Eutanásia: Foi criada uma “intolerável indefinição” no âmbito de aplicação

Eutanásia: Foi criada uma “intolerável indefinição” no âmbito de aplicação
LUSA

O Tribunal Constitucional considerou hoje que foi criada “uma intolerável indefinição quanto ao exato âmbito de aplicação” do decreto sobre a morte medicamente assistida, notando que o parlamento foi “mais além”, alterando “em aspetos essenciais” o diploma anterior.

O Tribunal Constitucional concluiu que, ao caracterizar a tipologia de sofrimento em “três características («físico, psicológico e espiritual») ligados pela conjunção “e”, são plausíveis e sustentáveis duas interpretações antagónicas deste pressuposto”, disse o presidente do TC, João Caupers, ao ler um comunicado justificativo da pronúncia pela inconstitucionalidade do decreto hoje `chumbado´.

João Caupers sustentou que, dessa forma, o legislador “fez nascer a dúvida, que lhe cabe clarificar, sobre se a exigência é cumulativa (sofrimento físico, mais sofrimento psicológico, mais sofrimento espiritual) ou alternativa (tanto o sofrimento físico, como o psicológico, como o espiritual)”.

“Foi criada, desta forma, uma intolerável indefinição quanto ao exato âmbito de aplicação da nova lei”, declarou.

João Caupers afirmou que o TC tinha considerado, numa anterior pronúncia, “que o direito a viver não pode transfigurar-se num dever de viver em quaisquer circunstâncias e que as condições em que é legalmente admissível a morte medicamente assistida têm de ser «claras, antecipáveis e controláveis» (Acórdão n.º 123/2021), cabendo ao legislador defini-las de modo seguro para todos os intervenientes”.

O juíz referia-se ao primeiro acórdão, de março de 2021, que também declarou inconstitucional uma anterior versão do diploma.

Na sequência daquele acórdão, notou João Caupers, a Assembleia da República aprovou uma nova versão da lei relativa à morte medicamente assistida não punível e “a expectativa do Tribunal era a de que nela tivessem sido introduzidas as modificações insinuadas naquele aresto”.

“Comprovou o Tribunal que o legislador, tendo embora desenvolvido esforços no sentido da densificação e clarificação de alguns conceitos utilizados na versão anteriormente fiscalizada, optou por ir mais além, alterando em aspetos essenciais o projeto anterior”, salientou.

Admitindo que, ao fazê-lo, o parlamento “limitou-se a exercer as competências que a Constituição lhe atribui”, João Caupers observou que tal opção “teve consequências, pois implicou que o Tribunal, chamado a pronunciar-se e aplicando a Lei Fundamental, houvesse de proceder a uma nova fiscalização, incidindo sobre as normas alteradas que foram objeto do pedido do Presidente da República”, disse.

Para o TC, a formulação da norma em causa, contida na alínea f) do artigo 2.º do decreto, “consente que dela se extraiam legitimamente alternativas interpretativas possíveis e plausíveis” que levaria a resultados práticos antagónicos.

Como exemplo, João Caupers disse que em termos práticos, “está em causa saber se um doente a quem tenha sido diagnosticado um cancro com um prognóstico de esperança de vida muito limitada, ou um doente que padeça de esclerose lateral amiotrófica que não tenham sofrimento físico (vulgarmente entendido como dor) têm ou não acesso à morte medicamente assistida não punível”.

A dúvidas que se levantou, na análise do TC, foi a seguinte: ou se reserva o acesso à morte medicamente assistida “apenas a pessoas que, em virtude de lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável, relatem um sofrimento de grande intensidade que corresponda cumulativamente às tipologias de sofrimento físico, psicológico e espiritual” ou “garantir o acesso à morte medicamente assistida a todas as pessoas que, em consequência de uma das mencionadas situações clínicas, sofram intensamente, seja qual for a tipologia do sofrimento”.

A alínea f) do artigo 2.º do decreto define como “sofrimento de grande intensidade, o sofrimento físico, psicológico e espiritual, decorrente de doença grave e incurável ou de lesão definitiva de gravidade extrema, com grande intensidade, persistente, continuado ou permanente e considerado intolerável pela própria pessoa”.

O Tribunal Constitucional (TC) declarou hoje, por maioria de sete contra seis votos vencidos, inconstitucionais algumas das normas do decreto que regula a morte medicamente assistida, em resposta ao pedido de fiscalização preventiva do Presidente da República, que já anunciou o veto e a devolução do diploma ao parlamento.