Cerca de meio milhão de portugueses são analfabetos. Muitos não tiveram oportunidade de ir à escola e os que aprenderam pouco rapidamente se esqueceram à medida que a vida avançou. Mas isso pode mudar.

Quando há três anos entraram pela porta do Espaço Cidadania Casal da Mira, na Amadora, os onze alunos não sabiam o ‘a, e, i, o, u’. Vieram com uma vida pobre em ensino escolarizado e rica em experiências, como a de trocar o país que os viu nascer por um que lhes prometia alcançar outros sonhos.

Ler e escrever são duas competências que se adquirem ao longo da vida. Somos educados conforme a Era e os padrões da sociedade onde nos inserimos e os países subdesenvolvidos são os que mais se debatem com a questão do analfabetismo.

Nas palavras de António Carlos, presidente da Associação de Intervenção Comunitária de Casal da Mira, “é um problema que atinge sobretudo pessoas de países africanos que não foram à escola e não só. Neste espaço, queremos que essas pessoas tenham igualdade de oportunidades e, para isso, têm de saber ler e escrever para poderem exercer a cidadania de forma plena.”

Aulas especiais

Os ponteiros do relógio marcam cinco da tarde. A lição começa pelas cinco e meia, mas, aos poucos, os alunos vão chegando à sala do Espaço transformada em espaço de ensino, com dois quadros de acetato já gastos da tinta dos marcadores, verde e vermelha. Num deles, ainda consta o resultado da soma de um hipotético orçamento familiar.

O analfabetismo ainda atinge mais de meio milhão de pessoas em Portugal

Quem vem aprender não vem por obrigação, nem para frequentar um ano de escolaridade específico. Hoje, só estão presentes mulheres, mas os alunos – de ambos os sexos, de várias idades – juntam-se todas as segundas, quartas e sextas-feiras com um único objetivo: aprender. Entre si, têm níveis de aprendizagem diferentes.

É o caso de Fátima Pina. A vergonha de não saber escrever começou a crescer quando ia à escola do filho, porque “não sabia escrever nem o nome dele, muito menos como assinar”. Deixou Cabo Verde há mais de 40 anos para construir uma vida em Portugal.

O pai, tal como o de muitas outras crianças naquela época, não a colocou na escola. “Pergunto-me muitas vezes porque é que ele não me pôs na escola. Mas o meu pai não podia, não tinha possibilidades. Naquele tempo tínhamos de trabalhar para ajudar o irmão mais pequeno… Era assim”, conta-nos, acrescentando que sempre sonhou saber ler e escrever.

Filipa Ferreira, a voluntária que dá as aulas, não é docente de profissão. Está a terminar o curso de Serviço Social e voluntariou-se pela segunda vez para um projeto instrução de combate ao analfabetismo.

De dossiê na mão, percorre as mesas dispostas em ‘u’ para relembrar o uso das consoantes ‘r’ e ‘s’. “Expliquem-me, por palavras vossas, quando é que aplicamos um ou dois ‘érres’”, pede a voluntária.

As senhoras segredam uns tantos vocábulos para o interior e há umas que ainda se atrapalham nesta matéria. Fátima não hesitou na resposta, porque “a palavra ‘caro’ é suave, por isso, leva um. Mas se for ‘barro’ leva dois, porque carregamos no ‘rro’”.

Isabel, Maria Freire e Paula, a única portuguesa do grupo, demoram um pouco mais a associar o som de ‘r’ em ‘janeiro’, ‘correr’ e ‘muro’, mas, com o seu tempo, fazem acertadamente a distinção.

Este tipo de conhecimento corresponde ao atual 2.º ano do ensino básico. A comparação da escolarização oficial com o que é lecionado nestas quatro paredes poderia retrair estas mulheres. Mas não.

Trata-se de um desafio de superação e de aquisição de conhecimentos para facilitar, ainda mais, os modos de vida com que até agora lidaram. Trata-se de se poder ‘ser’ com mais dignidade.

Maria segunda

A 18 de abril de 1974, uma semana antes da Revolução dos Cravos, a cabo-verdiana Maria – conhecida na sala de aula como ‘Maria Segunda’ – chegou a Lisboa na esperança de uma vida melhor.

Veio com o sonho de saber ler e escrever e nunca pensou que o iria concretizar aos 64 anos. Maria não sabe, mas a universalização do ensino em Portugal no período pós-revolução permitiu que, em pouco mais de quatro décadas, a população analfabeta diminuísse de 30% para os atuais 5%.

Aprender enquanto é tempo
Orgulhosa com o que tem aprendido, Maria Segunda aproveita o que sabe, todos os dias, quando consulta os horários do autocarro | © Record TV Europa

Quer dizer que cerca de 500 mil portugueses ainda não sabem nem ler nem escrever, numa altura em que a escolaridade obrigatória vai até ao 12.º ano e em que proliferam oportunidades para quem deixou o ensino para outros planos.

Os panfletos que circulam pelo espaço de ensino, que anunciam o projeto de alfabetização, não servem para quem aqui vem, muitas vezes, pedir ajuda para tratar de documentação ou apoio jurídico, porque não tem a competência da leitura nem da compreensão.

A mensagem é difundida pelo ‘passa a palavra’ e chega a pessoas que consideram que “o tempo certo para aprender é depois de casar, ter família e estar na reforma”, revela-nos António Carlos.

Nem todas as pessoas estão aposentadas. Há alunas que ainda trabalham, a maioria nas limpezas, e que, por isso, têm de faltar a algumas lições. Maria Segunda falta às sextas e não quer abrir mão da oportunidade que lhe está a ser dada.

Ler, até lê pouco. O nome também lhe custa escrever, mas o que aprendeu nestes últimos dois anos na escola transformou tarefas rotineiras simples em verdadeiras vitórias. “Quando vejo o autocarro e leio para onde vai já me valorizo em relação ao que era antes”, conta-nos junto a uma paragem de autocarro com sorriso tímido, interpretando o horário do transporte que a leva todos os dias da Pontinha para Lisboa.

Analfabetismo funcional

Mais do que praticar a leitura e a escrita, há que saber compreender o significado das palavras. Se o analfabetismo é o ‘grau zero’ do ensino, o analfabetismo funcional é caracterizado por não se conseguir relacionar conceitos com o que é lido ou escrito.

A interpretação de textos é um dos maiores problemas de quem, quase pela primeira vez, tem contacto com a escola. As letras desenham-se bem e até são aplicadas com pouca dificuldade nos espaços para completar uma palavra.

O problema, segundo Filipa Ferreira, é “não saber o significado das palavras”. A voluntária começou “a dar o nível inferior a pessoas que não sabiam sequer as vogais e atualmente já sabem ler coisas básicas devagarinho”.

Ler jornais, ver filmes na televisão, interpretar faturas ou tratar de documentos no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), por exemplo, é que ainda não é possível de forma autónoma.

Já lá vai o tempo em que a leitura era um obstáculo para Fátima até nas meras idas à mercearia. Como não conhecia os números, não fazia ideia dos preços nem distinguia o ‘barato’ do ‘caro’. As compras eram feitas com a ajuda de outras pessoas, mas tem a sensação de que nunca foi enganada.

Aprender enquanto é tempo
Desde que começou a aprender a ler e a escrever, Fátima Pina vai às compras com maior confiança | © Record TV Europa

Acompanhámos Fátima até à secção dos legumes de um supermercado no Casal da Mira, na Amadora, e perguntámos o que era possível comprar com dois euros. Apontou prontamente para o tomate, tabelado a um euro e vinte cêntimos o quilo, e disse-nos que se trouxesse o quilo que ainda sobrariam oitenta cêntimos. “Ainda tenho dificuldades, mas aprendi muita coisa”, diz sorrindo como quem acabou de vencer uma batalha.

A cultura geral também faz parte deste projeto. O que para estes aprendizes era, há uns anos, mar e terra agora tem nome de oceanos e continentes.

Filipa Ferreira recorda que “a maioria destas pessoas são imigrantes e de raça negra e que, muitas delas, não sabiam quem era Gandhi”. Foi então que decidiu fazer uma aula diferente para dar a conhecer personalidades que lutaram pelos direitos dos africanos, como Martin Luther King e Nelson Mandela.

“Adoraram”, lembra a voluntária. A mocidade de Maria Segunda e de Fátima não lhes permitiu que frequentassem a escola. Hoje, e já com o que a vida lhes foi ensinando, querem continuar a aprender enquanto é tempo. Maria espera que, em breve, consiga escrever o próprio nome com mais facilidade. Fátima ainda não desistiu de um dia vir a tirar a carta de condução.

FONTE© Wokandapix, Pixabay