Manuel e Beatriz sentam-se lado a lado no sofá da salinha de estar, rodeados pelas paredes crivadas de molduras com fotografias da guerra. Ele tem no colo o álbum com as ‘Memórias do Inferno’, ela foi acordar velhas cartas, escritas há quase cinco décadas pelo punho daquele que viria a ser seu marido.

“Olha aqui… ‘Amorzinho, eu te amo’… Chegavam cá as cartas e eu ficava toda contente…”. Do olhar de Beatriz desprende-se ternura e nostalgia enquanto vai contando que na altura chegava a receber duas e três cartas por dia. À pergunta do marido “Ainda tens isso guardado?”, não hesita um segundo e diz, em jeito de desabafo: “Oh… e terei, se Deus quiser…”.

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29 meses de África

As cartas chegavam de um continente que sangrava, ferido pela guerra. Manuel Besouro tinha 22 anos quando embarcou rumo a Moçambique, a 21 abril de 1971. Para trás ficava a família, amigos, a namorada com quem sonhava casar e todo um capítulo de vida que ali se encerrava.

Manuel passou 29 meses no mato. Quando voltou para casa, trouxe África inscrita na pele

“Naquela altura já esperávamos desde muito novos ter de ir cumprir o serviço militar a África, não tínhamos hipóteses mesmo.” Fez das tripas coração e, um mês depois, desembarcou em Tete. No corpo trazia as mesmas roupas com que deixara Portugal. Na mente, uma única missão: regressar. “Pensar no dia em que me vinha embora, tentar chegar ao fim para voltar, era sempre o objetivo e o que me dava força para continuar.”

Manuel passou 29 meses no mato. Foram meses de incerteza, de noites por dormir, de missões das quais podia não regressar. Traz ainda bem presente a primeira vez que entrou em combate: “As operações para onde íamos eram sempre muito difíceis, estávamos sempre preocupados, nunca sabíamos se voltávamos. A 24 de agosto de 1971, a primeira vez que entrei em combate, abatemos um guerrilheiro. Um indivíduo deu uma facada no pescoço do guerrilheiro, ainda hoje parece que oiço a faca a entrar no pescoço”.

Manuel tem uns olhos muito azuis, olhos que viram mais dor e morte do que aquilo que é capaz de contar. O tempo encarregou-se de lhe esvaziar o olhar, até só restar aquele azul, aquele pedaço de céu que a guerra deixou encoberto.  

“A minha companhia teve vários feridos e mortos. Era muito complicado porque nós éramos como uma família, muito unidos.” Pergunto-lhe quantos companheiros perdeu. Manuel não se alonga em detalhes. “Cinco. A minha companhia teve cinco mortos.”

Doa a quem doer

Muitos não voltaram e quem regressou não esquece. Há uma espécie de linha invisível que separa o tempo antes e o tempo depois da guerra. Quando voltou para casa, Manuel trouxe África inscrita na pele. “Quando regressei vim totalmente diferente. A minha companhia veio embora e eu fiquei. Como tinha sido promovido a furriel ainda lá fiquei mais um mês. Para mim foi logo muito complicado ver os outros partir, porque a ansiedade de vir era grande, nós queríamos era vir.”

Os pesadelos começaram pouco depois. A guerra não lhe deixou marcas no corpo, mas os estilhaços cravaram-se fundo na mente. “Sonhava que tinha a viagem marcada e já não podia vir, que era adiada outra vez, andei muito tempo com esses sonhos. Depois vieram os outros pesadelos, do que lá passei, com as mortes, com situações complicadas…”

Sintomas de stresse pós-traumático
  • Palpitações e suores
  • Aumento da pressão arterial 
  • Perda de apetite, problemas de concentração e sono
  • Tristeza, raiva e culpa
  • Pesadelos
  • Crises de ansiedade ou pânico
  • Depressão

Beatriz vai apanhando a roupa que tem estendida no quintal da casa onde vivem, na Chamusca, enquanto lembra como o marido sonhava alto e falava com os companheiros como se lá estivesse ainda com eles, a reviver África, uma e outra vez. Manuel não esconde a dor que, sem querer, lhe provocou. “A minha mulher sofreu muito, passei noites sem dormir, a falar de noite, a saltar da cama e a ir para a arrecadação e ela sempre preocupada comigo, à minha procura…”

Há marcas que o tempo não é capaz de apagar. Muitos anos passaram até Manuel conseguir falar sobre Moçambique e as ‘memórias do inferno’. Pelo meio houve alguns episódios de agressividade, discussões, uns breves encontros com o álcool. Uma ferida invisível aos olhos, mas uma dor em tudo real. 

“A vida no mato era não termos nada, nem água, comermos ração de combate, que era latas de conserva, andarmos sempre sobressaltados… As noites então eram terríveis”, desabafa. Manuel folheia o velho álbum de fotografias e murmura, mais para si do que para nós: “Doa a quem doer…”, palavras que Beatriz reconhece de imediato. “Era… Quando ias para o mato dizias sempre ‘Doa a quem doer’…”

Em busca do cessar-fogo

“Isto agravou-se conforme a idade foi passando e eu não tinha ajudas de ninguém. As pessoas não compreendem, é muito difícil, ainda há milhares com o meu problema que nunca tiveram apoio.” Quatro décadas depois, são ainda perto de 60 mil os ex-combatentes da guerra colonial que sofrem de stresse pós-traumático, com sintomas que passam por dores de cabeça, pesadelos, depressão e ansiedade.

Stresse pós-traumático é o segundo problema psíquico mais frequente em Portugal, apenas ultrapassado pela depressão

O stresse pós-traumático pode durar o tempo de uma vida, alerta a psicóloga Isabel Duarte: “Deixa sequelas profundas que depois mais tarde aparecem sob a forma de pesadelos, de adições, como o álcool por exemplo, aparecem sob a forma de ansiedade, as pessoas têm medos que não percebem. Se não for alvo de intervenção terapêutica pode viver-se com isso toda uma vida e, mesmo quando há intervenção, as pessoas aprendem a lidar com isso, é uma coisa que não desaparece por completo”.

Stresse pós-traumático em números
  • É a 2.ª doença psiquiátrica mais prevalente em Portugal
  • Afeta 1 em cada 12 portugueses
  • Cerca de 650 mil portugueses já sofreram desta patologia
  • Perto de 60 mil ex-combatentes da guerra colonial ainda sofrem de stresse pós-traumático
  • Duração média do transtorno é de 3 a 5 anos

 

Para Manuel, a ajuda chegou mais de 20 anos depois de voltar de Moçambique, pela mão da Associação dos Deficientes das Forças Armadas (ADFA), onde foi aprendendo a combater a guerra que traz dentro do corpo. Consultas de psicologia, de psiquiatria, muita medicação, terapias de grupo – Manuel não hesita quando diz que a Associação o salvou: “Até certa altura somos muito fechados. Depois comecei a falar mais, a falar muito da guerra. Demorei muitos anos até o fazer, até entrar na ADFA, onde me fizeram compreender que era a falar que ficávamos melhor. Salvaram-me a vida”.

A memória é um dos principais campos de batalha do stresse pós-traumático, em que esquecer é tão difícil como recordar. Manuel tenta encontrar o seu próprio cessar-fogo, amachucado pelo correr do tempo e por uma vida que lhe passou ao lado. “A guerra mudou-me totalmente. Costumo dizer que passei ao lado da vida. Ainda hoje a minha vida é aqui passada em casa. Eu sei que devia sair, mas não tenho vontade. Não tenho vontade para ir a festas, não tenho vontade para nada. Fico sentado no sofá, às vezes ligo a televisão, outras vezes estou com a luz apagada e estou só sentado, não tenho objetivos, não tenho nada… Precisava de esquecer a guerra. Esquecer isso tudo e ganhar ânimo para a vida, viver como as pessoas vivem. Era o que eu gostava.”

A companheira de uma vida já se resignou a esta solidão acompanhada, aos dias que se vão sucedendo, quase todos iguais, uns atrás dos outros: “Eu vou aqui e ali, gostava de o levar e ele nunca vai. E aí eu sinto pena de as outras senhoras estarem com os maridos e eu não, estou sozinha. Sinto pena de ele não ir comigo. Não quer ir”.

Manuel levou mais de duas décadas a conseguir falar sobre Moçambique 

Têm dois filhos e todo um passado em comum. A guerra intrometeu-se nas suas vidas, mas Beatriz sempre se mostrou uma fortaleza de alicerces inabaláveis. “Eu casei-me e a partir daí a gente nunca mais se entendeu. Foi difícil para nos entendermos um com o outro. Ele era agressivo e o meu cunhado dizia ‘Isto não é normal, ele veio assim da guerra, ele não era assim’… Foi terrível. Passei um bocadinho. Mas nunca pensei em divorciar-me. Pensava hei de conseguir, hei de ir para a frente…” E é com um semblante de adolescente apaixonada que, com um sorriso envergonhado, me confidencia: “Sabe, eu gosto muito do meu marido…”.

“Podes vestir as cuecas e ir embora”

Pelo menos um em cada doze portugueses já sofreu de stresse pós-traumático. É o segundo problema psíquico mais frequente em Portugal, apenas ultrapassado pela depressão. ‘Bea’ tinha apenas 14 anos quando foi forçada pelo namorado a ter relações sexuais. O namoro, que já de si era abusivo, acabou por tomar um rumo para o qual não estava minimamente preparada. “Começou a querer mais que uns meros beijinhos, a querer ter outro tipo de proximidade. Eu sempre rejeitei, não queria, não me sentia preparada, mas ele continuou com os avanços até que me disse que se eu não o fizesse era porque não gostava dele, porque não o merecia e então que me ia deixar.”

Stresse pós-traumático é o segundo problema psíquico mais frequente em Portugal, apenas ultrapassado pela depressão

Um ultimato, acompanhado de pressão diária, fez com que, mesmo contrariada, Bea acabasse por ceder à chantagem emocional de que era alvo. As mensagens eram constantes e pouco originais. “Praticamente todos os dias recebia uma mensagem, era simples, dizia ‘Então, é hoje?’. Constantemente. Até à última mensagem, que foi basicamente um ultimato ‘Eu estou em casa, a minha mãe não está, vens ter comigo ou então não me vês mais’.” Bea foi e contou cada minuto, uma contagem decrescente numa ânsia pelo final de algo que desejou nunca ter começado: “Eu estava muito contrariada, a fazer aquilo muito a custo… Lembro-me de estar a contar os minutos para aquilo acabar, não foi nada que me tivesse dado qualquer tipo de prazer, tanto físico como emocional, só queria que acabasse. No fim ele diz-me ‘A minha mãe vem aí, podes vestir as cuecas e ir-te embora’. Foi assim a minha primeira vez”.

Cicatrizes da memória

Uma primeira vez que acabou também por ser a última. Bea saiu de junto do namorado e chorou todo o caminho de regresso a casa. Recorda como se sentiu mal, devastada, suja até, o corpo a gritar que tinha feito algo de errado, que não se tinha respeitado nem à sua vontade. O namorado limitou-se a mandar-lhe uma mensagem a perguntar quando repetiam. Não repetiu, nem com ele, nem com nenhum outro homem. O stresse pós-traumático acompanhou-a durante três anos e deixou sequelas para a vida: “Deixei de conseguir estar com homens. Desde os meus 14 anos que não estive com mais nenhum, não consigo. Não suporto por exemplo que me toquem nas pernas, porque foi por aí que começou todo aquele ato… E sou muito intransigente no que diz respeito a insistências. Não suporto que insistam comigo”.

Cicatrizes da Memória - Manuel levou mais de duas décadas a conseguir falar sobre Moçambique | © Record TV Europa
Manuel levou mais de duas décadas a conseguir falar sobre Moçambique | © Record TV Europa

O apoio que na altura necessitava não o recebeu de ninguém. Apesar de ser apenas uma criança, viu-se julgada e condenada pelo crime de que se sente vítima. “Eu sempre lhe chamei violação, mas ninguém o vê como tal. Porque dizem que eu fui para lá pelo meu próprio pé, que eu sabia o que é que ia acontecer e fui na mesma, que eu permiti, portanto a partir daí não é violação. A meu ver ele violou a minha vontade, não me respeitou, violou o meu íntimo sabendo que eu não queria e que me estava a forçar a algo, ainda que não através de violência física, mas a nível de chantagem psicológica ele acabou por me manipular.”

Aos 30 anos, Bea não esconde as inseguranças que lhe trouxe o trauma de uma relação sexual que tolerou sem, no fundo, consentir: “Mudou-me completamente. Tornou-me numa pessoa insegura a todos níveis, porque comecei a pensar que não era boa o suficiente, porque se fosse boa o suficiente ele não me ia deixar só por eu não ter relações sexuais com ele, ia querer estar comigo. Isso mexe com a autoestima, com o psicológico e tornei-me muito insegura, a achar sempre que ninguém gosta de mim, que não vou ser o suficiente”.

O stresse pós-traumático é um dos transtornos psicológicos mais comuns do mundo e, em Portugal, já afetou mais de 600 mil pessoas. Bea e Manuel são dois rostos de uma multidão que, muitas vezes, limita-se a sofrer em silêncio. O tempo é fator decisivo e acaba por atenuar quase todas as feridas, mas nada nem ninguém pode apagar as cicatrizes da memória.

FONTE© Record TV Europa