O que outrora era vandalismo, é hoje considerado arte urbana. Nomes como Vhils ou Banksy são conhecidos um pouco por todo o mundo e as suas obras rendem fortunas. A ‘Share’ foi descobrir mais sobre a história do grafíti, que comemora hoje o seu Dia Mundial.

Cansado, o homem entrou em casa e pousou a um canto o fruto de mais um dia de caça. Tinha sido uma perseguição longa e difícil e o homem sentiu necessidade de poder registá-la de alguma forma. Uma mistura de carvão, sangue, plantas e gordura revelou-se a tintura perfeita, uma pedra afiada e um punhado de pelo serviram às mil maravilhas de pincel.

Estava criado o primeiro grafíti da história, há 40 mil anos, a que hoje chamamos pintura rupestre.

Necessidade de expressão

Datada do período Paleolítico Superior, a arte rupestre é o mais antigo registo da manifestação criativa do Homem. As paredes das cavernas e grutas transformaram-se em telas de representações de cenas de caça, animais, mãos e tantos outros sinais abstratos. Em Portugal, existem mais de trezentos locais onde esta arte pode ser admirada, com destaque para o Vale do Côa e o Vale do Tejo.

A necessidade de expressão artística tem acompanhado o Homem ao longo dos tempos

Na Roma Antiga, os cidadãos costumavam escrever a carvão nas paredes das construções, como forma de protesto e de divulgação de acontecimentos públicos. Alguns destes grafítis ainda podem ser vistos nas catacumbas de Roma e em outros sítios arqueológicos em Itália. 

No entanto, o verdadeiro boom na arte de grafitar só ocorreu centenas de anos mais tarde, já no século XX.

A lei das ruas

A forma mais antiga do grafíti contemporâneo é o tag, bastante usado nos anos 30 do século passado pelos gangues norte-americanos, como forma de delimitarem os seus territórios. O tag, assinatura feita de forma quase ilegível, era facilmente reconhecido como o símbolo e identidade de um grupo.

Nos finais da década de 1960, os jovens do Bronx, um subúrbio pobre nova-iorquino, ressuscitaram esta moda. Escrever o nome nas ruas era a sua forma de protesto contra a discriminação e um meio de se fazerem notados e respeitados.

Graffiti, plural de graffito, é uma palavra italiana derivada do grego γράφειν (graphein), que significa escrever

O grafíti surgiu associado ao movimento hip hop, cultura oriunda dos guetos norte-americanos, que engloba seis vertentes: DJ (disc-jockey), rap, beat box, MC (master of ceremonies), break dance e grafíti.

Nos subúrbios de Nova Iorque, dominados por gangues, imperava a pobreza e a violência, sendo a rua o principal espaço de lazer e o cenário ideal para as manifestações artísticas. Os grafítis espelhavam, assim, a realidade que se vivia nas ruas.

Da rua para a galeria
© Envato

Arte ou vandalismo?

A prática do grafíti estendeu-se por todo o mundo, tendo como precursor o movimento de maio de 1968, em França, com os muros de Paris repletos de mensagens de carácter político e revolucionário.

Em Portugal, surgiu na década de 1990, mas o seu ponto alto deu-se em 2001. De acordo com Vasco Teixeira Rodrigues, que fotografa grafítis na Grande Lisboa desde 1995, o que ocorria na altura e o que se passa atualmente é “diametralmente oposto”.

“Hoje temos profissionais, na altura eram rapazes, que estudavam no ensino secundário. Hoje há marcas de latas que nascem de propósito para quem faz grafíti. No início, os writers pintavam com as latas que conseguiam arranjar, as que havia eram de repintura automóvel, era uma cor horrível, não havia grande gama de cores, e os difusores, roubados no supermercado, eram de latas de laca.”

Diferente era também o modo de encarar o grafíti. Ao invés de arte urbana, era visto simplesmente como vandalismo.

Escultor de rostos

Já foi considerado “o português que mais contribuiu para levar o nome do país ao exterior” e distinguido pela imprensa estrangeira sediada em Portugal como a personalidade lusa de 2015. Falamos de Alexandre Farto, aka Vhils.

Com apenas 13 anos já percorria as ruas do Seixal para lhe pintar as paredes. Mas depressa a Margem Sul se tornou pequena demais para o jovem artista, que começou a viajar para pintar comboios, primeiro no país, depois pela Europa.

Foi a esculpir rostos em paredes, e sob o pseudónimo Vhils, que Alexandre Farto se tornou conhecido e falado em todo o mundo, com o desenvolvimento da sua técnica de baixo-relevo.

“Um dos conceitos fundamentais que exploro reside no ato de destruição enquanto força criativa, um conceito que trouxe do grafíti – um processo de trabalho através da remoção, decomposição ou destruição ligado à sobreposição de camadas históricas e culturais que nos compõem. Acredito que, de forma simbólica, se removermos algumas destas camadas, deixando outras expostas, podemos trazer ao de cima algo daquilo que deixámos para trás”, refere o artista português.

Para Shepard Fairey, artista considerado uma lenda nos Estados Unidos, Vhils é o “primeiro artista a trabalhar com tanta profundidade, pioneiro de uma nova expressão da qual é o melhor representante”.

Rumo ao espaço

Os trabalhos de Vhils estão espalhados pelas ruas de cidades um pouco por todo o mundo. Rostos anónimos que, segundo o artista, “resultam de um questionamento sobre a identidade, sobre o modo como ela é diluída ou é afetada pela cidade”.

A sua primeira grande exposição, ‘Dissecação’, foi inaugurada em 2014, no Museu da Eletricidade, em Lisboa e, em apenas três meses, atraiu mais de 65 mil visitantes.

Em Portugal, o grafíti surgiu na década de 1990, mas o boom deu-se em 2001

O seu talento chegou ao espaço no ano seguinte, com uma instalação artística colocada na cúpula da Estação Espacial Internacional. A obra mostra o rosto do astronauta Andreas Mogensen no único ponto da Estação Espacial onde se vê a Terra na totalidade e onde os astronautas conseguem assistir ao nascer e ao pôr do sol dezasseis vezes por dia. Foi a primeira vez que um artista português colaborou com a Estação Espacial Internacional.

O grafitter sem rosto

Banksy é um dos mais célebres artistas urbanos, cuja identidade permanece uma incógnita.

No site do britânico não encontramos qualquer biografia ou informação a seu respeito, apenas fotografias da sua arte.

O facto de permanecer anónimo tem contribuído para a crescente valorização do seu trabalho, segundo os especialistas, que afirmam que na especulação reside parte do encanto.

Da rua para a galeria
Uma das obras mais emblemáticas de Banksy, numa rua de Londres © D.R.

Gíria do grafíti

O grafíti possui um calão muito próprio, recheado de termos em inglês.

Writer – Artista urbano
Crew – Grupo de writers
Spot – Local onde é feito o grafíti
Bite – Cópia, influência de um estilo de outro writer
Kings Writer que adquiriu respeito e admiração dentro da comunidade
ToyWriter principiante e inexperiente
Tag – Assinatura
Bombing – Grafíti rápido, ilegal
Piece – Grafíti onde se usa mais de três cores
Freestyle – Estilo livre
Bubble Style – Estilo de letras arredondadas, mais simples e primárias
3D – Estilo em três dimensões, baseado num trabalho de brilhos e sombra das letras
Cross – Pintar um grafíti ou assinatura por cima de um trabalho de outro writer
Hall of fame – Mural mais trabalhado
Backjump – Comboio pintado em circulação, enquanto está parado numa estação
End to end – Carruagem ou comboio pintado de uma extremidade à outra, sem atingir a parte superior
Whole Car – Carruagem pintada de uma ponta à outra e de cima a baixo
Whole Train – Comboio com todas as carruagens pintadas, de uma ponta à outra e de cima a baixo
All city – Aquele que escreve por toda a cidade ou país

Apesar de a identidade nunca ter sido confirmada, cientistas britânicos defendem que Banksy é, na verdade, Robin Gunningham. A descoberta foi feita através de um técnica chamada perfil geográfico, que consistiu na análise da distribuição geográfica das suas obras. Mas ao certo, entre teorias e especulações, o mundo não sabe quem é o autor que se esconde por detrás do mais icónico nome da street art mundial. 

Banksy criou um mural no campo de refugiados de Calais, onde até Steve Jobs figura. O já falecido fundador da Apple surge com um saco de lixo preto ao ombro e um dos primeiros computadores Apple na mão, acompanhado da descrição: “Somos muitas vezes levados a acreditar que a imigração suga todos os recursos de um país, mas Steve Jobs era filho de um migrante sírio. A Apple é uma das empresas com o maior lucro do mundo, paga mais de sete mil milhões de dólares por ano em impostos – e apenas existe porque os EUA deixaram um dia entrar um rapaz oriundo de Homs, Síria”.

Mr. A

Queriam que estudasse mecânica, mas sempre se recusou a seguir o que os outros achavam bom para ele. Para André Saraiva, grafíti não é vandalismo, mas sim “um belo crime”.

Começou a carreira em 1980, em Paris, quando começou a pintar nas ruas da cidade. Se lhe perguntam o que faz, responde simplesmente que escreve o nome em paredes.

O artista de origens lusas tem um alter-ego, a que chama Mr. A, uma figura pernilonga, de cabeça redonda e sorriso rasgado. 

“Ele sempre foi um alter-ego, um amigo, tornou-se uma assinatura, uma sombra que me segue. Existe por si só e aquilo de que sempre gostei e que também é a base do grafíti é que ele pertence à parede e pertencerá a quem lhe der atenção e o adopte. Ele pertence a toda a gente.”

O MUDE (Museu do Design e da Moda), em Lisboa, recebeu em 2014 a primeira grande mostra do criador de Mr. A. André Saraiva tem colaborado com marcas como Louis Vuitton, Levi’s ou Chanel e a sua obra é reconhecida e exposta em diversos museus e galerias de arte contemporânea.

O artista, nascido na Suécia de pais portugueses, afirma estar sempre um pouco por todo o lado. “Sou do mundo e de lado nenhum. Não me sinto francês, nem português. Sou sempre um estrangeiro.”

 

FONTE© Envato/markusgann