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Entrevista Manuel Antunes da Silva

Hoje celebra-se o Dia Mundial da Água. O water sommelier certificado elogia o precioso líquido português: “Temos muitas águas naturais, de boa qualidade”.

Entrevista Manuel Antunes da Silva
© D.R.

Geólogo de formação, há mais de 25 anos que trabalha como responsável de recursos hidrogeológicos de várias marcas de águas minerais naturais. Foi o primeiro water sommelier português certificado, uma espécie de escanção que aconselha a escolha da melhor água para degustar uma refeição.

A que se deve o seu interesse pela área específica das águas?
Ao trabalhar com águas minerais naturais de nascente – naturais num todo -, desenvolvi o gosto pelas águas. A certificação que obtive tem a ver com o seguimento deste trajeto. Conheço a água desde a sua origem até ao ponto em que ela é distribuída (engarrafada ao público). Sempre provei água e tive interesse em perceber as diferenças de gosto de umas águas para as outras. Apesar de nos ser ensinado que a água não tem sabor, cheiro e cor, isso não se aplica a todas as águas da mesma forma – estamos a falar de águas naturais, excluindo águas preparadas…

O facto de ter formação em Geologia pode dar-lhe alguma vantagem em relação a outros colegas que também tenham conseguido a certificação?
Acho que sim, mas pode ser presunção minha. O facto de entender a origem de cada água, o tipo de rochas com que está em contacto, a forma como se origina toda a mineralização que faz parte da água – porque estas águas não são só hidrogénio e oxigénio, existe toda uma série de minerais onde a água circula em profundidade -, deixa-nos muito mais despertos para as pequenas nuances. Ao provar uma água, não temos acesso a uma panóplia de sabores como, por exemplo, acontece com um vinho ou cerveja. No caso da água, temos de estar muito mais focados nos pormenores. Este tipo de background dá-me algum tipo de apoio na identificação deste tipo de detalhes.

“Nós assumimos a água como um bem sempre disponível. Felizmente, no nosso país, abrimos uma torneira e temos água. Não estamos a falar do mesmo tipo de produto [água mineral natural], mas isto faz com que as pessoas sintam a água como algo comum, que não tem nada de especial” – Manuel Antunes da Silva 

Ao nível das características das águas minerais, quais são as que mais facilmente se identificam?
Numa perspetiva de consumo de água engarrafada, a questão principal passa pelo facto de as pessoas se habituarem a ler o que está nas garrafas. Nos últimos anos, os consumidores estão muito mais despertos para ler o que está nos rótulos dos produtos que compram – se tem químicos adicionados, se é um produto natural… As águas de que estamos a falar são naturais de nascente, por isso, não são águas às quais possa ser adicionado seja o que for – são tal e qual estão na natureza, mas disponibilizadas engarrafadas. A variação entre umas e outras, além do sabor e do nosso gosto pessoal, tem a ver com o que vem no rótulo. Nas águas minerais naturais é obrigatório que constem no rótulo os elementos minerais que fazem parte da água e que são identificativos, que são característicos daquela água. Fazendo isso, percebemos que, de umas águas para as outras, há diferenças que são possíveis de identificar

Entrevista Manuel Antunes da Silva
Geólogo de formação, Manuel Antunes da Silva foi o primeiro water sommelier português certificado | © D.R.

O curso que tirou na prestigiada Doemens Academy, na Alemanha, foi muito longo?
Foram duas semanas muito intensas a provar águas, a afinar a nossa perceção acerca do que são as águas minerais. Na Alemanha há um universo de duzentas águas minerais e muito do trabalho foi desenvolvido à volta desse portefólio. Pudemos identificar uma série de características, desde os iões predominantes ao tipo de carbonatação da água. Uma das facilidades que tive ao frequentar este curso teve a ver com o facto de eu ter experiência ao nível da prova de águas, que me permitiu absorver melhor todos estes detalhes acerca da caracterização, pela prova, das águas.

A profissão de water sommelier é ainda uma novidade em Portugal, mas é já uma tendência noutros países…
A nível mundial não é nenhuma novidade. A instituição onde fiz a formação já fez vários cursos do mesmo género e existem outros no mundo. 

Imagina que em breve seja comum encontrar restaurantes em Portugal com profissionais certificados?
Dentro de uma determinada gama e nível de restaurantes, sim. Há aqui um passo que tem de ser dado, como nos vinhos. Em muitos países, como nos EUA, o vinho era adquirido como branco ou tinto e não havia muita ligação com o que era a marca, a origem do vinho… Havia branco, tinto e, eventualmente, rosé. Hoje as pessoas já se preocupam com a origem do vinho, a marca, se é mais seco ou mais doce, se é mais frutado… Houve uma evolução cultural no consumo do vinho. No caso da água terá de acontecer o mesmo. Nós assumimos a água como um bem sempre disponível. Felizmente, no nosso país, abrimos uma torneira e temos água. Não estamos a falar do mesmo tipo de produto, mas isto faz com que as pessoas sintam a água como algo comum, que não tem nada de especial. Enquanto não houver este passo de cultura será difícil que possamos ter esta atividade.

“Temos muitas águas naturais [em Portugal], de muito boa qualidade. Algo que caracteriza as águas minerais é a sua pureza natural, isto é, não podem ter na sua composição nenhum tipo de contaminante químico ou microbiológico” – Manuel Antunes da Silva

Para que se verifique uma harmonia gastronómica, ao nível da comida e das bebidas, tem de haver uma gestão entre os vários profissionais para que a experiência seja a melhor possível para o cliente…
A questão das harmonizações entre os vários produtos a consumir numa mesma refeição é fundamental. Nem todas as águas são iguais, nem todos os vinhos são iguais, e os pratos também podem variar muito em termos de sabor. E podemos ter, por exemplo, uma água que suporte melhor pratos mais fortes e outra que suporte melhor pratos mais leves, como um peixe grelhado – aí haverá diferenças em termos de águas que poderão ser aconselhadas, tal como são aconselhados diferentes tipos de vinhos ou de cervejas, consoante o que é servido.

Perito em águas
Manuel Antunes da Silva é o primeiro water sommelier português certificado, depois de concluir uma formação na prestigiada Doemens Academy, na Alemanha, que forma especialistas em cerveja, vinho e água.
Este tipo de profissionais, comuns em restaurantes de referência, são uma das tendências no universo da gastronomia internacional. Um especialista na degustação de águas é capaz de aconselhar sobre qual a melhor escolha para que os vários sabores intervenientes numa refeição permitam uma experiência harmoniosa.
Um water sommelier é capaz de identificar os minerais que compõem uma água, influenciando o seu sabor final.     

Que características deverá ter uma água para combinar com um prato de carne ou com um prato de peixe?
Vamos para os limites, por exemplo, uma feijoada ou um bacalhau assado são refeições com um sabor muito intenso, com algum ‘peso’ na digestão, e vamos escolher águas que possam, não ocultar o sabor da refeição, mas sim apoiar… Estes pratos muito fortes acabam por criar uma certa cobertura nas nossas papilas gustativas – que tem a ver com a gordura do prato – que nos vai inibindo de fazer a degustação daquilo que estamos a comer. O mesmo se passa com o vinho, que nos sabe de uma maneira no início da refeição, mas se continuarmos a beber e a comer, no fim, saberá de forma diferente. Numa água das pedras – que tem uma quantidade de gás natural na sua composição, em perfeito equilíbrio com a parte líquida – o próprio dióxido de carbono vai ter uma ação sobre as nossas papilas gustativas, limpando-as e permitindo que continuemos a degustar ao longo de toda a refeição os vários detalhes da comida ou do vinho que a acompanha. Numa refeição mais forte, eu diria que é aconselhável uma água deste género, mais mineralizada com um toque de dióxido de carbono natural, que seja próprio da água. Numa refeição mais leve, poder-se-ia optar por uma água deste género com uma carbonatação não muito forte ou mesmo sem – uma água lisa poderia ser uma água para acompanhar um peixe grelhado ou uma salada. Em relação aos vinhos, há um princípio de que os tintos acompanham as carnes e os brancos ligam com o peixe, mas há muita exceção e os gostos das pessoas também variam muito. Julgo que a função do water sommelier é conseguir descrever às pessoas aquilo que estão a provar, para que elas possam tomar uma decisão antecipadamente e ter uma ideia do que podem esperar daquela água juntamente com a refeição.

Tal como acontece com os vinhos, Portugal é um país rico em diversidade e qualidade de águas minerais?
Temos muitas águas naturais, de muito boa qualidade. Algo que caracteriza as águas minerais é a sua pureza natural, isto é, não podem ter na sua composição nenhum tipo de contaminante químico ou microbiológico, e isto na própria origem, na captação. O trabalho do industrial do engarrafamento passa por transportá-la, da captação ao consumidor, sem que seja introduzido algum tipo de contaminante que a possa alterar. E, a partir deste ponto, as águas minerais naturais são produtos 100% naturais e excecionais. Graças ao nosso enquadramento ambiental, temos muitas origens de boas águas naturais em Portugal. Não encontra, provavelmente, águas minerais naturais em Lisboa, porque são ambientes com uma atividade entrópica muito grande e o impacto em qualquer água subterrânea será, à partida, grande. Mas se for mais para o interior do país, sobretudo para o Norte, vai encontrar a maior parte dos engarrafamentos das águas minerais do país.

Há alguma região em Portugal e no resto do mundo que produza águas minerais naturais de excecional qualidade?
A definição de água mineral natural a nível europeu caracteriza-se pela circulação profunda e pela sua pureza original. Partindo destes dois pressupostos, todas elas são ótimas, desde que sejam águas minerais naturais.

O grande inimigo das águas minerais naturais é mesmo a ação humana…
Fundamentalmente, sim. Felizmente, em Portugal, não temos casos de águas que tenham sido desclassificadas por questões desse género, mas há países em que as águas deixaram de ser engarrafadas, como águas minerais naturais por questões de contaminação com origem na atividade humana.

Um water sommelier deverá ser capaz de identificar a origem de uma água. É mesmo assim?
Há questões que podem ser identificadas. Se estivermos a falar de águas minerais naturais de muito baixa mineralização, temos de estar muito atentos ou muito habituados para as conseguir identificar. À medida que a mineralização aumente, teremos maior possibilidade de identificá-la, se é mais ou menos rica em sódio, cálcio ou magnésio. Há outras questões que não conseguimos identificar, a não ser que tenhamos uma experiência de prova de muitas águas acabamos por ter um catálogo mental dos sabores e poderemos começar a dizer ‘esta pertence ali e esta além’…  Mas para isso é preciso um trabalho de muitos anos, com muitas águas…

Fala-se muitas vezes da alcalinidade das águas e de poderem ser mais ou menos saudáveis consoante o seu PH…
A questão do PH mais ou menos elevado nas águas não tem impacto direto no nosso organismo. A atividade do nosso organismo dá-se com uma série de fenómenos de oxidação. É tido como verdade – embora não seja – que o consumo de produtos com o PH elevado, logo mais alcalinos, irá evitar esse tipo de oxidações. Isto não é assim, porque o PH de qualquer produto que ingerimos quando chega ao nosso estômago passa a ser de um ou de dois. Podemos ter um produto de PH 14 – que é o valor mais elevado -, muito alcalino, que quando chega ao nosso estômago desce para um ou dois. Não há nenhum produto que tenha PH diferente de um ou dois e que tenha esse impacto no nosso estômago para diante, no nosso trato digestivo. O fundamental é que na composição dos produtos que consumimos existam componentes que assegurem a estabilização do nosso PH interno. O bicarbonato, por exemplo, é uma substância tamponante, que assegura que o PH dentro de um corpo em equilíbrio varie pouco, dentro de um intervalo pequeno. Podemos ter águas ricas em bicarbonato e um PH por exemplo de seis e meio, o que quer dizer que a água, ao ser ingerida, passa por um PH de um ou dois, que é o que temos no estômago. No entanto, o ião bicarbonato pode ser integrado na corrente sanguínea e desempenhar esta função tampunante, reguladora do nosso PH interno. É mais importante a composição das águas ou dos produtos que consumimos do que o PH.

Entrevista Manuel Antunes da Silva_1
Manuel Antunes da Silva explica que tal como acontece com os vinhos ou cervejas, também um water sommelier pode aconselhar qual é a água mais indicada para acompanhar refeições de carne ou peixe, mais leves ou pesadas | © D.R.

Além do sabor, há outras inovações que as marcas tenham introduzido no mercado das águas?   
Adicionar aromas nas águas minerais naturais é uma tendência recente. No fundo, é juntar um produto natural (água mineral) com aroma, um concentrado de frutas… Há também produtos que têm adições artificiais, de açúcares. Há, depois, muitas águas que não são minerais naturais, mas sim ‘construídas’. Há águas que têm como base uma água qualquer, que na origem (captação) até pode não ser própria para consumo, mas posteriormente é tratada, trabalhada, no sentido de se tornar própria para consumo, e à qual podem ser adicionados alguns minerais, açúcares.. Mas esse é um trabalho que não é natural, logo essas são águas ‘artificiais’. 

Essas águas são um produto, do ponto de vista da sua pureza, menos nobre e, talvez, mais barato…   
Menos nobre sim, valor mais baixo não necessariamente… Por exemplo, nos EUA o conceito de água mineral natural é completamente diferente. As águas para serem engarrafadas e comercializadas têm de ter algum tipo de desinfeção. Isto pressupõe que a água na sua origem não é pura. Nós, europeus, para podermos comercializar as nossas água tal e qual as comercializamos aqui, sem nenhum aditivo sem nenhuma desinfeção, temos de provar – e isto é uma questão processual – ao longo de um ano que a água na própria captação é impecável. São dois conceitos completamente diferentes e nos EUA pode encontrar-se muita água ‘construída’, mineralizada artificialmente, com características que não são naturais.

“Há águas de França, Itália ou Alemanha com um sabor diferente daquele que temos e estamos habituados em Portugal” – Manuel Antunes da Silva 

Quais são as maiores ameaças a que a ‘fábrica’ das águas minerais está sujeita?
As águas minerais naturais em Portugal são pertença do Estado e são concessionadas às empresas que as exploram. Segundo a lei, há a obrigatoriedade do estabelecimento de um perímetro de proteção. Em qualquer área geográfica onde haja uma delimitação de uma zona de área de concessão tem de haver uma delimitação de perímetro de proteção que tem três zonas: imediata, que protege a captação; intermédia, que protege a zona do aquífero que está a ser explorado; e uma zona alargada, que protege a zona de recarga – ou seja a área onde o sistema aquífero profundo é recarregado. Toda a água mineral faz parte do ciclo da água – tal como aprendemos na escola: chove, vai para os rios, evapora, volta a chover… Não temos é o detalhe da água subterrânea. Há uma parte desta água que se infiltra em profundidade e é esta que alimenta os aquíferos de água natural em profundidade. O que temos de salvaguardar, por um lado, é que estas zonas de recarga se mantêm com condições, que não aportem poluentes em profundidade. Por outro lado, temos de garantir que na área de captação não ocorre atividade que a possa pôr em risco. Nas captações, temos também de garantir a segurança da renovação dos recursos. Isto é, não podemos tirar mais do sistema profundo do que aquilo que entra no próprio sistema, porque senão corre-se o risco de esgotar a água mineral natural, que é um recurso renovável desde que corretamente explorado.

Se tivesse de eleger a sua água ou região de águas favorita qual seria?
[risos] As águas com que trabalho mais são aquelas que prefiro. Gosto muito da água das Pedras, água de Vidago, Melgaço… São para mim as rainhas das águas portuguesas. São águas gasocarbónicas naturais, a própria ‘fábrica’ é uma coisa excecional. Uma água da chuva que desce por fraturas da rocha, que muitas vezes não têm a espessura de um fio de cabelo, e depois, em profundidade, se junta ao gás carbónico que advém do manto do globo terrestre, é algo de excecional e de fabuloso. Temos poucos casos desses em Portugal – para além destes três temos mais um ou dois. Pela sua excecionalidade, a Água das Pedras é uma coisa fantástica e tem todo um equilíbrio e uma natureza inerente fabulosos. É a minha água favorita, sem dúvida.   

E não sendo em Portugal?
[risos] Há águas de França, Itália ou Alemanha com um sabor diferente daquele que temos e estamos habituados em Portugal. Mesmo bebendo algumas dessas águas, não me sinto satisfeito, por exemplo, para deixar de ter sede, porque não é o tipo de água a que estou habituado. Há águas muito boas lá fora, não estou a dizer o contrário, e todas as águas naturais minerais são por princípio excelentes. Agora, estou habituado a águas de baixa mineralização, como são os casos das que temos em Portugal.

 

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