O anúncio chegou no passado dia 24 e acabou por deixar todos surpreendidos. ‘Ice Merchants’ fazia parte da lista de nomeados aos Óscares, concorrendo à estatueta de ‘Melhor Curta-Metragem de Animação’. Um feito inédito para o cinema português.

“Havia sempre aquela esperança, mas não, não estávamos à espera. Havia tantos e bons filmes na shortlist que sempre pensámos que a probabilidade era muito pequena. Mas ficámos bastante contentes, além de surpreendidos”. Bruno Caetano, produtor do filme, explica que toda a equipa ficou surpreendida com o anúncio, numa explosão de alegria, ainda que à distância, de todos que fizeram, produziram e distribuíram o filme, tal como revelam as imagens partilhadas pelo realizador João Gonzalez, no Instagram.

‘Ice Merchants’ nasceu na visão do realizador português, que é também autor da banda sonora e coautor da animação, que conta a história de um pai e um filho que vivem no topo de uma montanha inóspita e saltam de paraquedas para chegar até à aldeia para vender o gelo que produzem.  

“O João é um realizador muito original na maneira como desenvolve as coisas. Ele trabalha de uma forma que eu invejo, porque tem um processo muito próprio e muito natural para ele. Ele primeiro teve uma visão, uma imagem daquela casa no penhasco… e depois, imediatamente, começou a ter uns laivos sonoros, umas ideias. Durante uns meses ele passou a vida a saltar do estirador, dos desenhos e dos esboços para o piano. Então, ele teve ali uns meses a saltar de um lado para o outro até ter uma ideia mais concreta daquilo que queria fazer”, conta à Record TV, Bruno Caetano.

Ice Merchants O ceu e o limite no caminho para os Oscares_1
Bruno Caetano é o produtor de ‘Ice Merchants’. O filme português concorre aos Óscares 2023 na categoria de ‘Melhor Curta-Metragem de Animação’ | © D.R.


Os primeiros esboços surgiram no quarto de João Gonzalez, em Londres, quando este ainda estudava no mestrado na Royal College Art. A partir daí seguiu-se um processo de anos que atravessou a pandemia. “Acabou por ser um processo muito interessante, porque na altura vivíamos todos um gigante desconhecido, isto era algo que nos fazia ter um objetivo e fugir àquela realidade estranha que estávamos a viver”, contou o produtor.

O segredo para o sucesso

Da produção para a distribuição e consequente sucesso foi só mais um passo. Na verdade, a nomeação para os Óscares foi apenas o culminar de uma época cinematográfica brilhante para ‘Ice Merchants’. Em nove meses, a curta-metragem esteve presente em mais de 100 seleções em festivais de primeira categoria, 45 prémios, nomeações para os Prémios Europeus de Cinema, para os Emmy, tendo ainda sido distinguido em Cannes, na Semana da Crítica, recebendo o prémio Leitz Cine Discovery, destinado à melhor curta-metragem em concurso. Foi a primeira vez que o prémio foi atribuído a uma curta de animação. Bruno Caetano fala numa “reação incrível” por parte do público, que se pode justificar com a capacidade que a narrativa tem em despertar emoções junto do público.

“Acho que tem a ver com o lado muito humano do filme. O filme tem uma mensagem muito humana e muito universal – e acho que isso faz que chegue a qualquer pessoa, independentemente da língua que se fale ou da cultura onde se tenha crescido e vivido. O filme chega a toda a gente e o João conseguiu fazer isso com distinção”, explica.

Trailer do filme ‘Ice Merchants’

Uma indústria que ainda não o é

Uma nomeação para os Óscares é um feito de que poucos podem orgulhar-se e, especialmente em Portugal, pode abrir portas para um maior reconhecimento desta arte no país e, acima de tudo, trazer “mais de curiosidade no grande público para prestar um pouco mais de atenção ao cinema de autor”.

Bruno Caetano acredita que o cinema português, principalmente o de animação, é reconhecido lá fora como sendo de qualidade, mas para o produtor falta algo essencial para esses projetos: financiamento.

“O ICA (Instituto do Cinema e Audiovisual) acaba por ser um anjo da guarda para todos os cineastas que querem trazer à vida as suas ideias. No caso particular da animação, perante o ICA nós temos realizadores supertalentosos, autores incríveis. O que eu gostaria é que o ICA conseguisse atribuir uma percentagem superior de financiamento, porque o que recebemos fica um pouco aquém, em comparação por exemplo com a imagem real. Comparativamente, fica muito aquém, somos sempre o parente pobre. Na brincadeira costumamos dizer que uns são filhos outros são enteados, mas há alguma verdade por trás destas palavras”, confessa. 

Além do financiamento em projetos específicos, o país poderia ir mais além, defende o produtor, alimentando uma verdadeira indústria do cinema de animação, que tem todo o potencial para começar a crescer em Portugal.

“Se nós conseguíssemos ter mais quatro ou cinco pontos percentuais no orçamento total do ICA, nós teríamos alguma coisa que é muito necessária em Portugal, que é uma indústria da animação. Nós já nos distinguimos com o cinema autoral. Toda a gente no mundo sabe o quanto a animação portuguesa é incrível e os nossos autores talentosos. Mas nós precisamos de um pouco de espaço em Portugal para termos coisas tão simples quanto financiamento anual para uma longa-metragem, por exemplo, financiamento anual para uma ou duas possíveis séries de animação”. Para o produtor a mão-de-obra já existe, faltando apenas estrutura para a manter.

'Ice Merchants': O céu é o limite no caminho para os Óscares
‘Ice Merchants’ | © D.R.

“Num país onde temos múltiplos cursos de animação, em variadas faculdades, politécnicos e cursos profissionais, nós estamos a formar talento que depois não tem trabalho. Isto é uma coisa que me preocupa. Há muito talento que começa a sua formação em Portugal que acaba por ir trabalhar para o estrangeiro devido às oportunidades de emprego”, refere.

O céu é o limite

‘Ice Merchants’ tem data de estreia em Portugal agendada para o próximo dia 16 de fevereiro. A curta-metragem vai chegar ao grande público nos cinemas, em sessões isoladas que a distribuidora espera conseguir por um preço “simbólico”.

Ainda que só agora chegue ao grande público, o reconhecimento do trabalho já está, em parte, feito. A nomeação para os Óscares trouxe uma notoriedade global a uma curta-metragem portuguesa, muito difícil de alcançar em condições normais.

Por agora, fazem-se os preparativos para a presença na cerimónia no Dolby Theatre, em Los Angeles.

Até lá o sonho continua vivo e a estatueta pode sempre vir para Portugal. “Até dia 12 podemos sonhar o que quisermos. Até dia 12 o prémio pode ser nosso. Depois logo se vê o que a realidade nos diz”, afirma, sorridente, Bruno Caetano.

FONTE© D.R.