Há sons que ficam para a História. Pela simples genialidade, sucesso conquistado ou devido a uma interpretação inesquecível. Mas há outras músicas que tiveram um protagonismo ainda maior. E sem as quais o presente seria, provavelmente, diferente. No dia em que se comemoram 48 anos da ‘Revolução dos Cravos’ recordamos algumas.

Quando José Afonso – popularmente conhecido por ‘Zeca’ Afonso – escreveu a letra de ‘Grândola, vila morena’, em maio de 1964, estaria longe de imaginar o impacto que, quase uma década depois, aquelas palavras iriam ter na democracia portuguesa.

Vivia-se a primeira hora da madrugada de 25 de abril de 1974, quando a música passa na rádio e chega aos ouvidos atentos dos ‘capitães de abril’ – grupo de militares antirregime que pretendia implementar a liberdade democrática. Estava dado o segundo passo para colocar em marcha o plano revolucionário com vista a mudar os protagonistas no poder.

Imortalizada pela importância que teve na ‘Revolução dos Cravos’, a composição de ‘Zeca’ Afonso funcionou como uma segunda ‘senha’ – a primeira foi a música ‘E depois do adeus’, de Paulo de Carvalho, também emitida via rádio, mas cerca de uma hora e meia antes – para que os militares saíssem dos quartéis de vários pontos do país, em direção à capital Lisboa.

O objetivo era obrigar à rendição de Marcello Caetano, Presidente do Conselho de Ministros do Estado Novo, que sucedera a António Salazar após a sua morte. A revolução estava na rua e seguia imparável.

Resgatada do passado

O ambiente solidário e afetuoso encontrado por Zeca Afonso em Grândola, bem como o contacto com a população local, terão tido forte impacto no músico, servindo-lhe de inspiração para dar corpo a uma canção inesquecível e intemporal

Contam as memórias que o cantautor português teve a ideia de escrever ‘Grândola, vila morena’ após uma visita à povoação alentejana, durante a celebração do 52.º aniversário da Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense.

Também ‘Bella ciao’, uma música popular italiana do início do século passado, que se tornou num hino à resistência antifascista e nazi, ficou para a História. Com uma mensagem de esperança e de vitória, tem sido usada para outro tipo de contestações ou festejos – é, por exemplo, frequentemente utilizada por claques de futebol.

Tudo porque, após anos de ‘esquecimento’, a melodia alcançou o êxito internacional com a série espanhola ‘La casa de papel‘.

Poesia popular

Conhecida pelo seu ativismo político e social, a cantora folk norte-americana Joan Baez terá em tempos sintetizado a importância da música.

“[A música] é provavelmente o único média realmente capaz de ultrapassar todas as barreiras, todas as línguas e todos os países – Joan Baez”

Ela e Bob Dylan – o famoso músico a quem a academia de Oslo decidiu, surpreendentemente, entregar o Prémio Nobel da Literatura, em 2016 – muitas vezes emprestaram as suas vozes e palavras para defender causas como os direitos da população negra nos EUA e contra a guerra do Vietname.

Essas melodias com raiz popular tornaram-se autênticos hinos de protesto social. Nessa mesma linha, vários têm sido os estilos musicais que têm os poderes instituídos e a própria sociedade como alvos da crítica.

O punk rock, que surgiu na segunda metade dos anos de 1970, nos EUA e em Inglaterra, tinha nessa atitude contestatária uma das suas principais características. Pouco depois, também o rap ‘punha o dedo na ferida’ em relação à vida nos subúrbios e denunciava a segregação racial, numa sociedade de maioria branca.

Combater a fome

Ao longo dos tempos, a música tem sido um veículo de transmissão de sentimentos e as letras podem ter um propósito mobilizador. Foi o que aconteceu na década de 1980, quando o cantor e compositor irlandês Bob Geldof conseguiu colocar vários artistas britânicos a dar voz a uma causa humanitária, através do single ‘Do they know it’s Christmas?’.

Nomes como Bono e The Edge (ambos dos U2), Boy George, Paul McCartney, Duran Duran, entre muitos outros, não hesitaram em associar-se à Band Aid, projeto humanitário destinado a angariar dinheiro para combater a fome na Etiópia.

O sucesso da iniciativa – o single vendeu perto de quatro milhões de cópias no Reino Unido e, ao gerar vários milhões de lucro, surpreendeu até os próprios organizadores – teve continuidade no ano seguinte no evento Live Aid, megaconcerto realizado em vários palcos e países, que juntou muitos dos músicos mais famosos da época.

Uma vez mais, a música serviu para angariar fundos, que ascenderam a largas dezenas de milhões de dólares. E, tal como noutras ocasiões, teve um poder transformador, levando esperança a quem pouco tinha.