Pedro Machado está há dez anos em lista de espera. Tinha médico de família em Colares, no concelho de Sintra, mas, desde que se mudou para Sacavém, em Loures, ficou a descoberto.
“Nunca cheguei a ter médico de família ao longo destes dez anos, aliás, atribuíram-me uma médica no ano da pandemia, no centro de saúde do Prior Velho, mas nunca cheguei a vê-la, porque foi-se embora, antes de conseguir uma consulta”, conta o utente.
O mesmo acontece com a mulher e os dois filhos. O mais novo, de nove anos, nunca foi seguido num centro de saúde. “Quando tem alguma doença, vamos à urgência pediátrica, mas consultas de rotina não existem. Temos tido sorte, porque é um rapaz saudável.”
Pedro integra o grupo dos mais de 925 mil utentes que não têm médico assistente na área de Lisboa e Vale do Tejo, a mais afetada por esta carência. “Quando preciso de consulta, é complicadíssimo, por telefone, nunca atendem a chamada… Tenho de vir à consulta aberta, chegar aqui às seis e tal da manhã, tirar senha e esperar ter sorte. Tenho de faltar ao trabalho.”

De facto, é assim o procedimento para quem não tem médico de família nesta zona pertencente ao Agrupamento de Centros de Saúde de Loures/Odivelas. Chegar de madrugada à Unidade de Saúde Familiar (USF) de Moscavide, para onde são reencaminhados todos os utentes nestas condições.
É o que acontece também com Cleinismar Vaz. “Temos de vir cedo e aguardar aqui. Eles distribuem senhas e esperamos…”
Cleinismar é brasileira e está há quase cinco anos em Portugal, a viver em Santa Iria de Azóia, Loures. No dia em que falou com a nossa equipa de reportagem, não tinha conseguido ser atendida. “Precisava de uma declaração do médico, mas vou ter de voltar, hoje não consegui.”

Pedro teve mais sorte. E a sensação que fica é que foi mesmo uma questão de sorte. “Tive de estar a ‘pedinchar’ e consegui o que precisava: uma requisição do médico e uma consulta. Mas foi graças à boa-vontade das pessoas que aqui trabalham.”
Situação semelhante acontece no centro de saúde que alberga residentes do Laranjeiro e do Feijó, em Almada. Só aqui, há quase 5600 pessoas sem clínico atribuído. Mas Luísa Ramos, da Comissão de Utentes de Saúde de Almada, explica que, mesmo quem está na lista de um médico de família, não tem tido acesso fácil conseguir consultas e exames.
“Imagine que tenho médico de família, mas que ele não tem agenda para me ver e eu tenho uma doença crónica, preciso de fazer exames de rotina e análises… O médico da consulta aberta que me vê não tem autorização para me passar esses exames, porque é da responsabilidade do médico de família! Ouço frequentemente relatos destes.”

Lacunas afastam médicos do SNS
São problemas como este que desincentivam os profissionais de medicina geral e familiar a ficar no sector público. Nuno Jacinto, da Associação de Medicina Geral e Familiar, elabora-nos uma espécie de lista: “Falta formação, investigação, há falta de material clínico como estetoscópios, por exemplo’ e não clínico, como telefones… Há também problemas nos sistemas que falham com regularidade, continuamos com sistemas informáticos que não comunicam entre si…”
Acresce uma grande falta de autonomia das USF, prometida aquando da criação deste modelo para os cuidados primários. “Continuamos com processos burocráticos, difíceis. Ficamos sempre com a sensação de que não conseguimos falar com a pessoa certa. É sempre com outro ‘alguém’…”
É o que nos conta também Paulo Santos, a partir do consultório que tem em Gaia. O médico de família esteve na fundação das USF, mas optou por deixar o Serviço Nacional de Saúde (SNS) há largos anos, cansado de esbarrar numa estrutura complexa demais para quem está no terreno: o Ministério da Saúde.
É uma hierarquia muito complexa, fechada, rígida, que nunca percebeu que é preciso levar o nível de decisão para a base, para as ARS [Administrações Regionais de Saúde] e para os ACES [Agrupamentos de Centros de Saúde]. Às vezes, para mudar um vidro era quase preciso pedir ao secretário de Estado para assinar o papel! – Paulo Santos
Foi um dos fatores que o ajudou a tomar uma decisão ainda assim difícil. Optar pelo sector privado em exclusivo teve também a ver com o facto de os médicos dos cuidados primários não serem muitas vezes isso mesmo: médicos a tempo inteiro.
“São atribuídas aos médicos tarefas que os afastam do seu perfil. E isto é uma diferença enorme em relação ao sector privado. As pessoas no público não percebem porque é que eu tenho de passar mais tempo a olhar para o computador do que para elas… e eu também não”, lamenta Paulo Santos.

Os salários são naturalmente também um dos motivos da fuga de clínicos para o privado ou para o estrangeiro, para a investigação ou outras áreas. A julgar pelo que aconteceu no passado, a Associação de Medicina Geral e Familiar estima que fiquem no SNS apenas pouco mais de metade dos cerca de 500 recém-formados nesta especialidade.
“Se tivermos as taxas de retenção que temos tido, vamos ter pouco mais de 300 médicos de família a entrar para o SNS… A perspetiva é que se reformem mil. Mesmo que se reformassem só metade, iríamos ter sempre um saldo negativo”, explica Nuno Jacinto.
1,3 milhões de utentes sem médico
Hoje, quase um milhão e 300 mil utentes estão sem médico de família no país, um valor que engordou desde 2015, quando o primeiro governo de António Costa tomou posse: são agora mais 254 mil pessoas. A região com a situação mais preocupante é a de Lisboa e Vale do Tejo, onde se concentra cerca de um milhão, ou seja, a esmagadora maioria dos utentes sem médico de família.
As cerca de mil reformas previstas para este ano e o aumento de inscritos nos centros de saúde ajudam a explicar estes números, a par, como já vimos, da incapacidade de reter muitos dos jovens especialistas. É verdade que o número de vagas na Medicina Geral e Familiar foi crescendo ao longo dos anos, mas impõe-se a questão: não poderia ser ainda mais engrossado?
“Nós podemos aumentar muito o número de vagas, mas se posteriormente não tivermos onde colocar estes recém-formados, vamos acabar por ter um número grande de médicos a sobrar e, depois, em vez de um problema teremos dois. Dir-se-á que isso também acontece noutras áreas… Certo, mas é isso que queremos, tendo em conta que é o Estado que financia estes profissionais?”, questiona o presidente da Associação de Medicina Geral e Familiar.
Tutela refugia-se no silêncio
Dar um médico assistente a cada utente foi um objetivo traçado, mas falhado pelo primeiro executivo de António Costa. Na atual legislatura, os socialistas optaram por nem sequer definir essa meta.
Tentámos, insistentemente, uma entrevista com a Ministra da Saúde para que pudéssemos perceber de que forma vai a tutela responder a estes problemas, mas o pedido foi recusado. Nem Marta Temido nem qualquer secretário de Estado do Ministério da Saúde estiveram disponíveis para falar com a Record TV.
A única resposta que obtivemos surgiu por e-mail através da assessoria do Ministério da Saúde. À Record TV, a tutela diz que continua empenhada em melhorar a cobertura dos cuidados de saúde primários, através das medidas que constam do Programa do Governo, como a criação de mais USF; o reforço do número de trabalhadores no SNS, revendo os incentivos para atrair e fixar médicos em zonas carenciadas e ainda a melhoria das condições de trabalho no SNS, através da construção ou modernização destas unidades.
Também a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo recusou-se a falar com a Record TV. Numa resposta enviada por e-mail, disse que, por tratar-se de um problema nacional, a questão não é da responsabilidade deste organismo, mas sim do Ministério da Saúde. Sendo naturalmente verdade, também sabemos que este é um fenómeno com mais repercussão nesta área do país.
Nenhuma entidade diretamente responsável pelos cuidados primários quis prestar esclarecimentos. Mais do que a Record TV, são os utentes que ficaram uma vez mais sem resposta.