Simão usa os acordes da guitarra e a voz para uma causa. Foi através da música, um amor de longa data, que Simão Correia lançou o apelo. ‘Não tenhas medo de salvar uma vida’ é o título do vídeo que apela à inscrição como dador de medula óssea, numa iniciativa que já se tornou viral nas redes sociais.

“Não estava à espera, de todo”, conta Simão. “Eu quando fiz o vídeo, fiz de uma maneira um pouco inocente, atrevo-me a dizer. Não estava à espera deste boom gigante que se deu. Mas ainda bem que se deu, não só por mim, que estou nesta situação mais delicada, em relação à minha doença, porque estou a precisar do transplante. Mas em relação a muitas outras pessoas que, inclusivamente, me têm enviado mensagens a dizer ‘Olha Simão, vou precisar de um transplante, obrigado por estares a tomar esta iniciativa e a dar a cara’. Logo eu que detesto câmaras, chamadas telefónicas e muito tempo de antena”, confessa, entre risos.

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Simão Correia tem uma leucemia linfoblástica aguda e necessita de um dador compatível para fazer um transplante de medula | © Record TV Europa

Há um ano Simão recebeu o diagnóstico que ninguém quer ouvir: leucemia linfoblástica aguda. Um nome pomposo para um cancro que afeta a medula óssea e a criação das células que compõe o nosso sangue. O jovem de 23 anos recebeu o diagnóstico em setembro do ano passado depois de uma ida ao hospital devido a uma gastroenterite.

Os sintomas não eram claros nem foram imediatamente associados a uma doença grave. 

“Um dos sintomas era o cansaço, um cansaço extremo. Mas o que é certo é que eu ando sempre cansado, eu acho que já nasci cansado. Sempre fui uma pessoa muito cansada por natureza”, refere Simão Correia

“Então não liguei. O outro sintoma que me apareceu foram uns altos, uns pequenos nódulos que me apareceram na cabeça, um pouco mais rijos e que doíam quando pressionava. Achei estranho, mas não associei a nada. Na verdade, associei a um problema de dermatologia, mas fui ao hospital porque estava com uma gastroenterite, porque comi umas porcarias que não devia ter comigo e foi então que me diagnosticaram a leucemia”, explicou.

Depois de uns dias para confirmar o diagnóstico Simão foi transferido para o Instituto Português de Oncologia (IPO), e iniciar os tratamentos de quimioterapia. Esteve internado cerca de um mês e agora anda num limbo entre a casa e o IPO, numa jornada que também pode ser acompanhada online, através das redes sociais, nas quais Simão partilha os diários da sua jornada.

“Comecei a escrever os diários numa de mostrar à minha família e aos meus amigos mais próximos o que se estava a passar no IPO, com os meus tratamentos e o que é que me ia na cabeça. Tanto que se formos a ver os meus primeiros diários falam sobre tudo, às vezes até dizia uma ou outra asneira… agora já começo a ser um bocadinho mais comedido. Mas começou quase como uma brincadeira para mostrar aos meus, mas o que é certo, é que aos poucos e poucos, o pessoal começou a seguir e começou a seguir. Não estava a espera mais ainda bem que aconteceu também”, afirmou.

A cura pode passar por um transplante de medula óssea, mas, para isso, Simão precisa de um dador de medula compatível

“Não é que haja leucemias mais fáceis do que outras, são todas complicadas, mas não era uma leucemia muito fácil e por causa disso seria necessário o transplante”, explicou o jovem.

Simão dá a cara por todos aqueles que precisam de um dador compatível e não têm. O jovem chegou a ter correspondência com dadores existentes nos registos, mas, por alguma razão, o processo não avançou.

“Sim já tive correspondência com um certo número de dadores, alguns por gravidez, ou porque podem ter adoecido, ou porque não são compatíveis como eles achavam ao início. Outros podem ter desistido. Também me disseram que pode ser uma das causas para não ter um dador nenhum dador pronto a avançar”, explicou.

Mais do que sensibilizar para a necessidade de haver mais dadores, é também essencial perceber que se trata de um processo simples, mas que exige responsabilidade e compromisso.

“Tem de ser um ato consciencioso, e, para quando o pessoal vai, perceber o que está a fazer. Se calhar nem é para a pessoa daquela campanha em específico, mas saberem que estão a salvar essa vida. Estás a salvar uma vida, e há uma vida que pode depender dessa dávida, que é tão simples”, explica.

Em Portugal existem cerca de 390 mil dadores inscritos no Centro Nacional de Dadores de Células de Medula Óssea, Estaminais ou de Sangue do Cordão (Cedace). Mais do que novos dadores, são necessários dadores mais jovens

“O que nós precisamos, sim, é de dadores de um determinado grupo muito bem definido, porque é utilizando dadores desse grupo que os resultados do transplante são francamente melhores. E qual é esse grupo? É o grupo de pessoas com idades entre os 18 e os 35 anos e, sem querer ser machista, preferencialmente do sexo masculino. Porque sabemos de facto que os resultados finais do transplante são melhores quando se fazem com este tipo de dadores”, explica Manuel Abecasis, Presidente da Associação Portuguesa Contra a Leucemia (APLC) e pioneiro na transplantação em Portugal.

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Manuel Abecasis é Presidente da Associação Portuguesa Contra a Leucemia e pioneiro na transplantação de medula óssea em Portugal | © Record TV Europa

“A mediana de idades dos dadores portugueses é de 39,8 anos. A mediana de idades dos dadores dos registos europeus é de 32 anos, por isso nós temos um registo que, embora seja numeroso, é de uma população que, em termos de transplante, já não está naquele grupo que torna mais apelativa a utilização dos nossos dadores”, avançou.

O médico responsável pelo primeiro transplante de medula em Portugal, realizado há 36 anos, apela também às dádivas de sangue das quais dependem inúmeros doentes, nomeadamente com diagnósticos de leucemia. 

“Para as atividades do dia a dia, para, por exemplo, tratar doentes com leucemias, para fazer transplantes, para fazer qualquer tipo de cirurgia, é necessário sangue, são necessárias plaquetas. Nós, de facto, temos uma adesão reduzida da população portuguesa saudável à dádiva de sangue”, afirmou o médico.

Em Portugal fazem-se, por ano, cerca de 300 transplantes alogénicos, ou seja, através de um dador compatível

Enquanto não entra nas estatísticas, Simão refugia-se na família, na namorada e na música para superar o diagnóstico, os tratamentos e as temporadas passadas no IPO.

“Tenho a consciência de que estar rodeado de pessoas casa, de pessoas que me fazem sentir em casa, também é fundamental. Ter a minha namorada ao meu lado, os meus pais ao meu lado, ter a minha família, os meus amigos. Estar bem rodeado das pessoas certas tem sido fundamental para dar o passo.”

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Simão com a namorada e os pais | © Record TV Europa

Para já, Simão mantém a vida em suspenso até à chegada do tão esperado dador e consequente transplante. Uma leucemia afeta diretamente o sistema imunitário e é algo que pode privar os doentes das coisas mais básicas como o contacto direto com amigos e familiares.

“Eu tinha o mestrado para começar este ano. No ano passado tentei, não entrei. Este ano entrei e não pude começar… Foi um bocadinho ingrato de alguma forma”, afirma. “Não estou com os meus amigos desde que me foi diagnosticada a leucemia. Desde setembro do ano passado tenho feito algumas videochamadas, algumas mensagens, mas estar presencialmente, dar um abraço, um beijinho, não posso fazer nada disso. A minha sobrinha, que é pequenina, tenho imensas saudades de a abraçar, mas não posso, porque eles apanham imensas coisas nos ‘infetários’, como eu costumo chamar – não nos infantários, nos ‘infetários’. Por isso a minha vida tem estado um bocadinho parada, mas se Deus quiser irá continuar com muita força”, afirma, confiante.

O primeiro transplante

O primeiro transplante de medula óssea em Portugal foi realizado a 28 de maio de 1987, no IPO de Lisboa. Manuel Abecasis foi o médico que liderou a equipa que realizou o procedimento, num cenário de incertezas.

Hoje, este ato médico evolui em muitas formas, desde a origem dos dadores e a respetiva compatibilidade até à medicação e imunossupressão que acompanha o procedimento, que consiste, essencialmente, em substituir as células doentes por células saudáveis.

Nem todas as leucemias são curada com recurso a um transplante de medula, sendo que muitas são controladas com quimioterapia e outros fármacos

Atualmente, estes procedimentos podem tomar várias formas. O que aqui falámos, e que se adequa mais à situação de Simão, é o transplante alogénico, realizado com as células de um dador compatível, familiar ou não.

Casos há em que é possível realizar um transplante autólogo, utilizando a própria medula. Segundo explica o site da APCL, este pode ser um procedimento utlizado “em algumas doenças, como por exemplo no mieloma múltiplo, ou no linfoma”.

A APLC revela ainda que este procedimento revela vantagens, uma vez que não existe risco de rejeição das células. “Neste caso não há o perigo de rejeição, pois são utilizadas as células do próprio doente. Este procedimento permite que o doente seja tratado com uma dose muito elevada de quimioterapia, que poderia ser fatal se não fosse ‘salvo’ pela sua própria medula; há no entanto a possibilidade de aí existirem ainda algumas células tumorais, que podem levar mais tarde a uma recaída”, é possível ler.

Recentemente foi introduzia uma outra forma, o transplante haploidêntico, no qual o dador não precisa de ser 100% compatível, mas tem ser realizado com as células de um parente próximo.

“Desde há uns anos que surgiu uma nova modalidade de transplante, o chamado transplante haploidêntico, em que o dador é apenas 50% compatível com o recetor. É um transplante feito em contexto genético familiar, com recurso aos pais, ou aos filhos, por exemplo”, explica Manuel Abecasis.

“É evidente que se estivermos de escolher entre um dador não relacionado, que seja adequadamente compatível, ou fazer um transplante haploidêntico, claramente que preferimos fazer um transplante com um dador não relacionado, totalmente compatível. Este transplante é uma segunda escolha, numa será uma escolha de primeira linha. É uma escolha que se coloca quando a situação tem alguma urgência e não há tempo para se esperar muito mais por um dador”, conta o médico, que disse que a técnica foi introduzida no IPO em 2014 tendo, desde essa altura, sido realizados vários transplantes do tipo.

Ser dador de medula

“Em dois terços dos casos nós temos de recorrer a um banco de dadores”, explica Manuel Abecasis, o que revela a necessidade imperativa de atualizar o banco de dadores.

De acordo com Instituto Português do Sangue e da Transplantação, é possível encontrar um dador compatível para cerca de 70 por cento dos doentes. Cerca de 30% dos casos, os transplantes são realizados com recurso a um irmão compatível

Potenciais dadores de medula têm de ter entre 18 e 45 anos, pesar pelo menos 50 quilos e serem saudáveis, e nunca ter recebido uma transfusão desde 1980, segundo informação disponibilizada pelo Instituto Português do Sangue e da Transplantação, local onde consegue encontrar, online, a informação sobre os locais onde é possível fazer a recolha.

 

Doar é gratuito e todas as despesas são asseguradas num processo simples para quem dá, mas que pode representar tudo para quem recebe.

FONTE© Envato