PUB
Share Magazine Gente Entrevista Óscar Cardoso

Entrevista Óscar Cardoso

"Quando acabo um instrumento tenho sempre uma desilusão."

Entrevista Óscar Cardoso
Óscar Cardoso | © Record TV Europa

É na tranquilidade da Ericeira, entre as ondas do mar e a sua oficina, que um dos mais conceituados luthiers portugueses se inspira para dar forma a instrumentos inovadores, que conjugam tradição e modernidade. Numa conversa solta, fomos em busca do som perfeito.

Com que idade se interessou pela construção de instrumentos?
O meu pai, que também era guitarreiro, tinha uma deficiência e aprendi com ele a fazer instrumentos. Devia ter aí uns sete anos e lembro-me que ele me pedia ajuda porque não conseguia apanhar as coisas do chão. Às vezes, precisava de mim e eu andava na brincadeira – e ele à espera que eu chegasse. Comecei a mexer nas ferramentas, levava-as para a rua e, na brincadeira, martelava em qualquer coisa. Mais tarde, perguntou-me se eu conseguia serrar peças de madeira, porque a ele já lhe custava. Fazia isso, comecei a aplainar… Mesmo sem querer – porque ele queria que eu estudasse, mas eu não gostava – foi-me ensinando. A minha mãe – que também era uma grande artista na arte de fazer roupa – dizia-lhe: ‘O rapaz passa a vida aqui… Ensina-lhe’. Ela deu-lhe ‘cabo da cabeça’ até que ele disse que sim. [risos]

Atraíam-no mais as madeiras ou a construção do instrumento musical?
Ao princípio, era mais o trabalho com a madeira. O meu pai era uma pessoa muito interessante, que gostava de filosofar. E às vezes dizia-me coisas para ver se provocava alguma reação em mim. Contava-me que o mestre dele – o Álvaro da Silveira, um dos maiores guitarreiros que já existiu – fazia certas experiências na construção das guitarras. Como eu era fascinado por inventar coisas, ele sabia que aquelas palavras iam dar-me cabo da cabeça, pois eu não ia conseguir deixar de matutar naquilo. Os clientes chegavam lá à oficina e perguntavam o que eu estava a fazer. E o meu pai respondia: ‘Deixem-no, que ele é louco!’ [risos] Mas ele gostava que eu fizesse aquelas experiências – era uma forma de testar ideias que ele não tinha tempo de explorar.

Recorda-se do primeiro instrumento que fez de raiz?
Sim, foi uma viola e estava toda torcida. [risos] Cheguei a fazer quatro violas por semana, daquelas baratas, com contraplacado, todas torcidas. Às vezes, ia com o meu pai ao mestre dele e ele perguntava-me se eu já fazia violas. Quando respondi que sim ele pediu-me para que fizesse uma para ele ver. Nunca tive coragem. [risos] Agora teria, mas naquela idade não.

Quando termina uma peça fica a admirá-la ou pensa logo na próxima?
Quando acabo um instrumento tenho sempre uma desilusão. É algo que não tem explicação. Só me apetece parti-lo. Tenho uns sons na minha cabeça e ando sempre à procura de conseguir reproduzi-los. Quando termino um instrumento penso sempre: ‘Vamos lá ouvir o som disto’. E fico sempre desiludido. [risos]

Entrevista Óscar Cardoso
Óscar Cardoso | © Record TV Europa

E quando fica satisfeito?
Só fico satisfeito passados uns dois, três meses. O músico leva o instrumento e mesmo que este tenha um bom som, como não iguala o que está na minha cabeça, eu fico cego e para mim não presta. Mais tarde, quando o instrumento regressa à minha oficina por algum motivo – para trocar cordas ou para que eu o veja – fico a admirá-lo profundamente. Aí, o estado de ansiedade já passou e pergunto-me: ‘Fui eu que fiz isto? Isto até tem um grande som!’ [risos] Aí, já passou aquela fase de loucura. Se não volto a ver aquele instrumento, esqueço-o. Tudo o que faço, quando termino, acaba ali, porque os meus instrumentos nunca são iguais. São todos diferentes.

Quando estou a acabar um instrumento, já estou com outras coisas na cabeça, a planear fazer o próximo

O que distingue as suas guitarras das outras?
Essa pergunta é mais interessante se for feita aos músicos. Acho que tem a ver com a diferença sonora, com o timbre, o volume, talvez com o design. Quando aparece um instrumento meu a ser tocado na televisão, um músico sabe se é meu ou não, até pelo som. Eu também consigo distinguir, porque há características a nível sonoro, do design da guitarra que são diferentes. Agora é mais difícil porque há aí dois ou três guitarreiros que passam a vida a copiar-me. O som, ao contrário do design, é mais difícil de copiar. Como sou eu que invento as minhas coisas, não gosto que me copiem.

Para o som final, é mais importante o instrumentista ou o instrumento?
O instrumento tem de ter qualidade, bom timbre e ser um complemento do corpo do músico. E quando ele está a tocar, tem de o sentir como se fosse um órgão do seu corpo. Para que um músico transmita emoção às pessoas que o ouvem, o instrumento tem primeiro de lhe transmitir alguma coisa a ele. A sua sensibilidade é transmitida quando ele toca o instrumento. Se este não tiver certas características vai haver uma luta entre o músico e o instrumento. E isso não pode acontecer; a relação entre ambos tem de ser fluída – e quando isso acontece é uma loucura, pois entranha-se nas pessoas que estão a ouvir. Quando faço um instrumento estou a criar uma ilusão no músico e ele, com as emoções que coloca na guitarra, vai provocar uma ilusão profunda em quem o ouve. É importante provocar essa ilusão, que é passageira. Os músicos e os artistas no geral são pessoas especiais, pois proporcionam alegria às outras pessoas.

Qual é a melhor reação que pode ter de um músico em relação ao seu trabalho?
Por estranho que pareça, é eles não ficarem muito contentes. [risos] É isso que me faz andar para a frente e criar coisas novas. Nunca irei sentir num músico uma satisfação total – porque eles também são artistas. Nós temos a ilusão da perfeição, mas ela é inimiga da arte.

Quanto pode custar uma guitarra sua, por exemplo esta de dois braços [na foto, em baixo]?
Ainda não sei… Não gosto muito de falar no valor dos instrumentos. Custa-me sempre… Sei que têm um certo valor, mas como eu nunca gosto do som… O meu pai também tinha esse problema, era-lhe difícil dizer ao músico qual o valor do instrumento. Eu faço um preço, mas fico sempre a pensar se valerá esse valor. Não faço isto para ganhar dinheiro, faço porque gosto. E a pior coisa que um músico me pode fazer é levar um instrumento e não gostar dele. Se eu descubro, vou ter com ele e trago-o de volta. Os instrumentos são para ser tocados, para dar felicidade e alegria.

Se usar as mesmas técnicas e materiais na construção de dois instrumentos, o som final vai ser igual?
Tal como as pessoas, também não há duas guitarras iguais, pois as madeiras são sempre diferentes. Se pensarmos no tronco de uma árvore e se houver uma parte dele que fique muito tempo ao sol e outra mais à sombra, o som que essas madeiras vão dar vai ser diferente. Depois, as árvores também não são todas iguais. Há partes que têm uns veios mais grossos, outras têm-nos mais finos. Escolho a madeira de forma intuitiva: vejo a elasticidade, a rigidez… Aprende-se um bocadinho, mas nasce connosco. Costumo dizer que é o olhar para além do olhar. Quando um músico chega, falo com ele para perceber o que pretende e isso não é nada fácil. Também é muito importante perceber a personalidade do músico, perceber como ele toca o instrumento, como ele ‘ataca’ a corda, a força que projeta na corda, para que o instrumento seja feito à sua medida. São todos diferentes.

Às vezes, um instrumento não fica bem com determinado músico. Quando isso acontece, não lho vendo e ligo para outro, que sei que irá tirar melhor partido dele

O célebre guitarrista norte-americano Pat Metheny tem uma guitarra sua…
Sim, depois de a ter adquirido ele veio a Portugal para um concerto e enviou-me uma mensagem: ‘Não me esqueço de ti… Toco muitas vezes na tua guitarra, gosto muito dela.’ Ele ficou com uma guitarra minha há uns anos… É uma guitarra que não tem fundo. Ele estava a experimentá-la no anfiteatro da Aula Magna, que tem um corredor gigante. Estava ao fundo e os músicos dele encontravam-se no lado oposto, dentro de uma sala. Começou a tocar na guitarra sem fundo e estava completamente admirado pelo facto de ela ter som. Os músicos surpreendidos vieram ver de onde vinha aquele som. Aproximaram-se e ficaram admiradíssimos pelo facto de um instrumento sem fundo ter tanto som.

Essa é uma característica de alguns dos seus instrumentos. Como teve essa ideia?
Comecei a pensar no motivo pelo qual se colocam nas autoestradas aquelas barreiras sonoras, nas partes laterais, para evitar que o barulho dos carros chegue às casas que estão ao lado. O som tem de ser projetado de outra forma, tem de bater ali e ir para cima. E comecei a pensar nisso. Depois falei com engenheiros acústicos e pensei em fazer uma guitarra sem fundo. Convenci-me que ia resultar e resultou.

O seu filho faz parte da terceira geração de guitarreiros. É uma vocação familiar?
O meu filho já faz instrumentos, mas eu não sei se ele os faz por vocação e se gosta mesmo disto ou se é pela parte monetária – e isso preocupa-me bastante. Acho que é lógico que um pai que ensina a um filho a sua arte tenha sempre essa dúvida, esse medo. Porque ele no fundo é um artista. É uma dúvida racional. Mas sei que ele nasceu com capacidades e, se calhar, a evolução dele até está a ser mais rápida do que foi a minha – talvez porque eu sou ainda mais rígido do que o meu pai. Por outro lado, também quero ensinar-lhe o máximo. A eventual falta de tempo para isso é uma grande preocupação e às vezes motivo de conflito. Não consigo dominar a ânsia de lhe querer ensinar tudo, rapidamente; é mais forte do que eu – e é mau porque deixa a outra pessoa altamente nervosa.

Entrevista Óscar Cardoso
Na oficina partilhada por ambos, João Cardoso segue as pisadas do pai e também constrói instrumentos artesanais

E o som dos instrumentos dele é semelhante ao que sai dos seus?
É muito bom. Ele tem o som dele, tem um bocado do meu som e há uma mistura. O meu pai tinha o som do Álvaro da Silveira, mas tinha o seu próprio som; eu tenho o do Álvaro da Silveira, o do meu pai e o meu. O meu filho vai agarrar todas essas gerações. Também é um som especial. Digo a toda a gente que ele tem o dom do som. A energia que ele mete nos instrumentos é boa para ter um bom som. Ensinei tudo ao meu filho e ele faz tal como eu, mas o som dele é diferente. Isso tem a ver com a energia que ele emprega no instrumento, com a nossa personalidade. Tudo o que fazemos na vida tem a ver com a nossa personalidade. É isso que faz a diferença, é o que é importante.

Em relação aos instrumentos e ao futuro há algum sonho que queira ver realizado?
Tenho a ideia de fazer instrumentos com canas de bambu. É uma coisa que me anda a passar pela cabeça… Para oferecer aos amigos. É assim uma loucura minha, só para gerar reações. [risos] Para mim, o maior prazer é poder ver a reação na cara das pessoas. |

Entrevista Óscar Cardoso
Uma das criações mais inovadoras de Óscar Cardoso: juntou no mesmo instrumento uma guitarra clássica e uma guitarra portuguesa | © Record TV Europa

Peça original e única: duas guitarras num só instrumento
Óscar Cardoso inventou uma guitarra especial: portuguesa de um lado e ‘clássica’ do outro. A ideia surgiu depois de o músico Frankie Chavez se queixar que andava sempre carregado com muitos instrumentos. “Aquilo ficou-me na cabeça, mas não comecei logo a pensar – as coisas têm de me aparecer de repente. Mais tarde, agarrei e fiz o instrumento. Ele agora está é um bocado preocupado com a parte financeira… [risos]”
Já antes, em 2010, Óscar fez uma guitarra portuguesa de dois braços – um lado de ‘Coimbra’ e outro de ‘Lisboa’, com afinações distintas, próprias do fado de cada uma das cidades.

Exit mobile version