De voz embargada, ‘Ana’, nome fictício, diz que foi vítima de assédio moral por parte de um superior, durante três anos, na lavandaria onde trabalhava. “Eu nem via o chão, só chorava no caminho para o trabalho. Aquele homem fez-me tão mal… E o que me revolta é que saem impunes!”, diz, a chorar, a trabalhadora.

Assédio moral afeta quase um quarto dos trabalhadores
‘Ana’, nome fictício, queixa-se de ter sido vítima de assédio laboral por parte de um ex-superior hierárquico | © Record TV Europa

Tudo terá começado depois de, por intervenção da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), ‘Ana’ ter forçado a empresa a reclassificá-la atribuindo-lhe a categoria adequada. “Ele começou a denegrir o meu trabalho. E passou a dizer-me, com muita frequência, na presença dos outros: ‘A senhora está doente, devia de ir para a baixa… A senhora não está capaz, a senhora está a cometer erros porque está doente, as pessoas quando estão doentes devem de ir pedir acompanhamento… Precisa de um psicólogo, está a passar uma má fase, a sua família, esta fase de divórcio…’ Ainda hoje me pergunto se a minha família não ruiu exatamente porque eu deixei de ter espaço para ela.”

“Cheguei a trabalhar 22 horas num dia, 22 horas!” – ‘Ana’

O terror, conta, começou com palavras, mas prosseguiu com atos. ‘Ana’ tinha de trabalhar horas a mais para dar formação a uma nova colega e ainda fazer as tarefas diárias. “Eu tinha de trabalhar oito horas com uma pessoa ao lado que nada sabia e a quem eu tinha de ensinar tudo, tudo! E depois tinha todo o meu trabalho para fazer. Cheguei a trabalhar 22 horas num dia, 22 horas!”

Mas a pouco e pouco, a estratégia mudou e foi-lhe sendo retirado cada vez mais trabalho. “Em determinada altura, cheguei lá nem sequer tinha secretária! Não tinha secretária, não tinha telefone, não tinha computador, não tinha nada! Nem sequer um banco para me sentar!”, recorda, revoltada, a alegada vítima.

Numa altura em que ainda não se falava de assédio moral como hoje, acabou por resolver o caso depois de entrar em depressão e de meter uma baixa psiquiátrica de doze dias, que lhe permitiu refletir. Com a ajuda do sindicato, mudou radicalmente de atitude, fez valer os seus direitos e manteve-se na empresa até hoje. O alegado agressor saiu por outros motivos e nunca foi alvo de uma queixa.

Vigilante a vigiar estacionamento vazio à noite

E é este o fenómeno mais comum: sofrer, calar e ‘virar a página’, sem dizer a ninguém. Talvez por serem tempos diferentes, não foi o caso de Eugénio Rego. Tem rosto, nome, voz e, apoiado pelo sindicato, reuniu a coragem suficiente para denunciar aquilo que acredita ser assédio moral. Diz ter sido colocado num falso posto de trabalho para vigiar três lugares de estacionamento que estão vazios, durante toda a noite. “Deram-me um serviço da meia noite às oito da manhã, no parque de estacionamento da empresa, são três lugares reservados para viaturas da direção, onde estou ao frio, ao vento, à chuva… Estou ali ao escuro, de noite, tenho de chegar ao 2.º andar para ir a uma casa de banho, não tenho uma portaria, não tenho condições nenhumas e, ainda por cima, à noite, as viaturas da direção nem sequer lá estão!”

Assédio moral afeta quase um quarto dos trabalhadores - Eugénio Rego
Eugénio Rego é vigilante e, após ter recusado fazer horas extraordinárias por um valor desajustado, sofreu represálias da empresa em que trabalha | © Record TV Europa

Um castigo, diz o vigilante, depois de ter rejeitado fazer um horário excessivo, com uma baixa remuneração do trabalho extraordinário. “O chefe pediu para fazer mais do que o horário que eu tinha previsto, oito horas, e eu perguntei qual era o valor então a mais a receber e ele disse-me que era pouco mais de dois euros e eu disse que não. Tinha de cumprir o que estava no contrato coletivo de trabalho e não era legal ganhar só aquele valor. E começou a retaliação a partir daí.”

Antes de avançar para tribunal, espera que a situação seja revertida pela Vigiexpert, a empresa que, até ao fecho desta reportagem, não respondeu ao pedido de esclarecimento da Record TV.

Agressividade esconde incompetência das chefias

O assédio moral consiste na exposição de alguém a episódios humilhantes e constrangedores, repetitivos e prolongados, como explica a psicóloga especialista em saúde ocupacional, Liliana Reis: “De forma ativa, é quase perseguir diariamente, com uma interação negativa, alguém. Seja porque eu dou-lhe feedback negativo sobre a sua pessoa, sobre o seu aspeto, sobre o seu trabalho… O mais comum é assumir que a pessoa não vale, não acrescenta valor, não faz um trabalho bem feito, inviabilizando este sentimento de utilidade que a pessoa tem e que acrescenta para a organização.”

Liliana Reis
Liliana Reis é psicóloga especialista em saúde ocupacional | © Record TV Europa

A advogada Carmo Sousa Machado, especialista em Direito do Trabalho, complementa, dando vários exemplos do que pode caber neste tipo de ato: “Chamadas de atenção em público, à frente de outros colegas… Outro tipo de situações comuns é a não atribuição de todo de tarefas, que também toca aqui na violação do dever de ocupação efetiva, ou o inverso que é a atribuição de tarefas a trabalhadores que manifestamente não têm competências ou capacidade para as realizar, ou mesmo, a atribuição de uma carga extra de trabalho.”

Carmo Sousa Machado é advogada especialista em direito do trabalho
A advogada Carmo Sousa Machado é especialista em Direito do Trabalho | © Record TV Europa

Pode acontecer entre colegas, que estejam ao mesmo nível ou até abaixo, mas a maioria dos casos envolve chefias. “Às vezes, superiores hierárquicos sentem-se ameaçados por pessoas que a eles reportam”, refere Carmo Sousa Machado, indo ao encontro da ideia descrita pela psicóloga Liliana Reis: “A forma muitas vezes autoritária e pouco relacionada e sintonizada com as necessidades que estão do outro lado, falhas no planeamento ou na forma de envolver as pessoas e motivá-las para as tarefas, são, muitas vezes, lacunas de competência. Ou seja, comportamentos mais agressivos por parte de uma chefia, frequentemente, surgem por incompetência”.

Vítimas remetem-se ao silêncio

Um estudo recente e inédito, feito pela primeira vez em larga escala a nível internacional, demonstra que quase um quarto das pessoas empregadas já sofreu violência ou assédio no trabalho. Números impressionantes que a Organização Internacional do Trabalho acredita serem, ainda assim, apenas a ponta do icebergue, explica Valentina Beghini, representante desta organização.

“Falar de violência e assédio no trabalho ainda é, de alguma forma, um tabu” – Valentina Beghini, da Organização Internacional do Trabalho

“Pela primeira vez, nós apenas perguntámos sobre a experiência individual da pessoa. Não perguntámos se a pessoa conhecia alguém que tivesse sido vítima de violência e assédio no trabalho. E também outro factor, que é, por exemplo, 2,5% das pessoas que responderam diziam no início do questionário que estavam empregadas, estavam a trabalhar. Mas, quando perguntámos sobre violência e assédio no trabalho a meio do questionário, mudaram a resposta, disseram “Ah, não, não estava a trabalhar”. Isto confirma que as pessoas estão ainda um pouco hesitantes sobre a partilha deste tipo de experiências de violência e assédio no trabalho. Estes elementos permitem-nos pensar que, apesar do [relatório apontar para um] número enorme, a realidade é provavelmente, muito maior.”

O relatório feito em 121 países mostra que apenas metade das alegadas vítimas comentou o assunto com pessoas próximas. “Partilhaste com a tua família? Partilhaste com amigos? Com um supervisor, com os teus colegas de trabalho?” Só metade (pouco mais de metade das respostas) revelou ter partilhado este tipo de experiência. Isto dá-nos a ideia de que falar de violência e assédio no trabalho ainda é, de alguma forma, um tabu. E se olharmos para as razões… Vergonha, receio de manchar a reputação…”, diz Valentina.

O que fazer em caso de violência ou assédio laboral?

Antes de mais, importa ter em conta que, a partir do momento em que há uma queixa nos recursos humanos, é obrigação do empregador tratá-la. Todas as empresas estão, desde 2017, não só forçadas a ter códigos de conduta para prevenir situações destas, como obrigadas a instaurar um processo disciplinar, em caso de participação de assédio, como explica a advogada Carmo Sousa Machado.

“Há situações em que é absolutamente evidente que aquilo que está a ser relatado aconteceu e pode constituir uma situação de assédio e, portanto, o empregador dá início a um procedimento disciplinar. Há outras situações em que pode haver dúvidas, nomeadamente, porque não se sabe bem em que contexto aquilo aconteceu, como é que aconteceu, quem são as pessoas envolvidas e, então, a empresa pode avançar com outro mecanismo que é o processo prévio de inquérito. É, no fundo, uma averiguação prévia da situação, e em função dessa avaliação, prossegue-se ou não para o procedimento disciplinar”, explica.

Algumas situações morrem no processo prévio de inquérito, por se tratarem apenas de episódios pontuais. Os que seguem em frente, podem acabar com a sanção do alegado agressor, nomeadamente no despedimento, mas, se não se comprovar, o trabalhador que fez a queixa também pode ser castigado

Além da vergonha e do medo, a necessidade de fazer prova e algum desconhecimento também contribuem para o silêncio. Muitos trabalhadores, alerta Carmo Sousa Machado, não saberão por exemplo que estão protegidos, a partir do momento em que denunciam ou são testemunhas num caso.

“Se alguém for, por exemplo, objeto de um processo ou sanção disciplinar, que acabe ou não em despedimento, e se ocorrer no espaço de um ano após a queixa de assédio por parte da vítima, esta sanção é considerada abusiva. E o despedimento, por exemplo, é presumido abusivo e ilícito. E, portanto, se isto for para tribunal, é o empregador que tem de fazer prova de que facto era lícito e de que não é abusivo, como se presume. Portanto, há uma espécie de proteção, quer da vítima quer as testemunhas, para as encorajar a falar, a testemunhar, a não terem medo de denunciar”, refere a advogada.

Avançar com uma queixa-crime nas autoridades e seguir para tribunal é sempre uma opção paralela ao processo interno da empresa. É menos comum, mas a vítima pode ainda pedir uma compensação pelos danos morais causados.

‘Ana’ arrepende-se de não ter seguido todos estes passos: “Se fosse hoje, eu acho que teria seguido, passo a passo, o método de construção de prova, de forma a poder desmascarar a pessoa… Acho que sim, que faria isso. O que me custa no meio disto é saber que, de facto, ele ficou impune. Saiu da empresa, não sei se – para onde foi – foi assediar outros… Mas passou por mim. E eu não fiz nada para o parar”.

FONTE© Envato