Ana e Diogo contam-nos como a anorexia os guiou para um ciclo de degradação física e psicológica do qual, apesar de tudo, conseguiram sair.

A anorexia é a melhor amiga e conselheira de tantos jovens que caem nas suas malhas. Mas, ao longo do tempo, acaba por tornar-se na grande vilã da história.

Passaram mais de 10 anos desde que Ana Rosmaninho Dâmaso se libertou da obsessão pela magreza extrema, da recusa de alimentos e de um corpo ausente.

“Foi um processo de entrega numa fase muito destrutiva. E comecei a perceber que, ao longo do tempo, as coisas iam-se modificando em mim… a minha forma de pensar, de estar com os outros. A parte do meu isolamento e até a parte alimentar, comecei a fazer muitas restrições”, afirma a jovem.

“É uma doença que, de facto, não é muito clara para as pessoas. A maioria pensa que a anorexia é uma doença fútil, que as pessoas só querem ser iguais aos modelos, ser muito magras e parecer com quem aparecem nas revistas… E a verdade é que a anorexia é o oposto disso, é uma doença emocional, que acarreta um sofrimento inimaginável”, acrescenta Lara Castro Nunes, psicóloga do Núcleo de Doenças do Comportamento Alimentar, do Hospital de Santa Maria.

O meu limite foi comer uma maçã e beber não sei quantos cafés num dia – Ana Rosmaninho Dâmaso

Ana lidou com a morte precoce do pai e a mudança de escola entregando-se a uma depressão que começou por lhe tirar a vontade de comer.

“Ao longo dos anos isso foi-se intensificando mais, fui começando a contar as calorias, a fazer mais restrições… O meu limite foi comer uma maçã e beber não sei quantos cafés num dia, portanto, aí já foi no auge da doença. O corpo cria uma resistência muito grande, mas foi um processo também de muito desgaste físico, porque nós não deixamos de ter fome. É como se eu tivesse alguém a ditar-me ordens e não conseguisse sair dessa ordenação e aquilo tornou-se um ritual muito exigente, onde chegava ao ponto de deitar a comida fora. Fingia que comia, mas não comia e começava a fazer uma série de exercícios programados que, ao fim ao cabo, obrigava o meu corpo a ficar com uma fisionomia mais estilada”, conta a jovem.

Corpo que não é meu 1
Ana Rosmaninho Dâmaso | © Record TV Europa

Vanessa Mártires, nutricionista, explica como as vítimas deste distúrbio vivem sob o controlo da doença.

“Não se veem com o corpo que realmente têm. Têm uma imagem distorcida do que o corpo é e, nesse aspeto, vão criando as suas estratégias, enganando-se a elas próprias, para não ganhar o peso. Há um controlo obsessivo daquilo que ingerem e, muitas vezes, não se apercebem do que está a acontecer de facto”, refere a especialista.

O tempo ia passando e, todos os dias, durante cinco anos, Ana foi refém de um ciclo vicioso sem fim.

“Quando eu ia ter os jantares familiares, que sempre fizemos, era algo bastante complicado, porque as pessoas diziam-me ‘mas tens de comer, eu enfio-te uma colher pela boca abaixo’… Quando me diziam isso, eu ficava com mais raiva e isso ‘obrigava-me’ a fazer mais restrições alimentares. Era como se a doença me dissesse ‘agora vais ter de fazer isto, isto, isto e isto'”, conta.

“É uma espécie de cassete que está dentro da cabeça e estamos sempre a ouvi-la. Podemos imaginar… ‘Não comas, vais ficar uma gorda ou um gordo… Não faças isso, é horrível, vais perder a batalha. Vais ser uma fraca, mas se não comeres és forte e vais ser melhor do que os outros.’ Portanto, de facto, é como se tivesse uma voz dentro da cabeça permanentemente a ditar as regras do dia a dia. A determinado momento, as pessoas não ouvem mais nada”, refere a psicóloga.

Via-me ao espelho e queria sempre menos – Ana Rosmaninho Dâmaso

Mesmo no limiar da magreza extrema, acreditava estar gorda. Mesmo com muita fome, Ana contorcia-se e privava-se de comer aquilo que mais queria.

A anorexia nervosa é uma perturbação psiquiátrica complexa que dita aos doentes para viverem num corpo que não é deles.

“É um corpo que não é o nosso, portanto, há muitas mudanças. Há uma cabeça tão minada, é um estado psicológico tão doente que nós não temos forma de não conseguirmos arranjar estratégias de reverter. Nessa altura, eu via-me ao espelho e queria sempre menos. Ou seja, o espelho é um pouco como se costuma dizer e com razão traiçoeiro. E a balança ditava muito as ordens. Então, se eu tinha 35, no dia a seguir tinha de ter 34 ou 33, por exemplo… E isso de facto aconteceu. Chegou uma altura em que o meu corpo entrou num processo de desgaste tão grande, devido ao exercício físico que eu fazia, que fiquei cheia de feridas… Foi um processo muito doloroso para mim”, revela Ana.

A nutricionista Vanessa Mártires acredita que o primeiro passo neste processo, entre equipa médica e doente, é o da confiança mútua: “A nossa intervenção parte sobretudo de criar estratégias com a própria doente, criar uma relação de confiança porque só assim ela vai aceitar e cumprir os objetivos que vamos propor. É preciso desmistificar alguns mitos que trazem relativamente ao aumento de peso e é muito importante delinear um plano alimentar individualizado que não seja encarado como dieta, mas sim como uma educação alimentar.”

O mínimo que eu cheguei a pesar foram 32 quilos, já mesmo naquela fase mais terrível – Ana Rosmaninho Dâmaso

No auge da doença, Ana chegou a pesar 32 quilos. Trinta e dois quilos envolvidos num desconforto sentido em encontros de família e um desgaste do corpo que não suportava sequer subir umas escadas. Motivos suficientes para a fazerem perceber que há mais vida do outro lado do espelho.

“Esta doença também nos traz muita rebeldia… muita ingratidão também. Tinha de ser obediente e havia uma coisa que me iria obrigar a isso que era reconquistar as pessoas. Porque depois elas acabam por perder a confiança em nós. Foi um processo intenso, muito grande… Foi algo que devo muito às minhas irmãs e à minha mãe, sem dúvida, porque exigiu muito também delas. Lembro-me perfeitamente… tinha um corpo muito fraco e a minha irmã agarrou em roupas delas e dava-me para eu vestir. Portanto, foi algo que me emocionou bastante. Como se eu coubesse nas roupas dela, não é? Porque era impossível…”, afirma, visivelmente emocionada.

As irmãs, a mãe e a avó foram essenciais em todo o processo de superação da doença: “Acho que é a coisa mais difícil que nós temos, é ter outra vez cem por cento a certeza de que o outro não está desconfiado de nós e que o outro tem a certeza de que não nos vamos fazer mal novamente. Mas a minha família vive sempre presa um pouco a isso. Qualquer acontecimento mais trágico ou mais delicado, dizem-me logo para ter mais cuidado, há sempre essa preocupação excessiva… Portanto, acho que há marcas às vezes ficam mais nos familiares do que depois na pessoa quando ultrapassa o problema.”

Lara Castro Nunes acrescenta que “a família é um pilar fundamental, quer para o doente, quer para quem os trata. É muito importante que haja um trabalho de equipa, quer entre técnicos, porque as doenças devem ser tratadas por uma equipa multidisciplinar, quer a família e os técnicos de saúde têm de se tornar uma equipa contra a doença”.

“Estas doenças são muito poderosas, muito invasivas do espaço e da vida das pessoas, toma conta de tudo”, refere ainda a especialista.

É como ver-se um membro da tua família a autodestruir-se, tu tentares ajudá-lo e sentires uma impotência incontornável e ele não dar hipótese à pessoa de se chegar a ti, ou não dar hipótese de ter algum tipo de ajuda”, resume Ana.

Segundo a Organização Mundial da Saúde, os transtornos alimentares são um dos problemas de saúde mental mais frequente entre adolescentes de todo o mundo

Nas consultas de Doenças do Comportamento Alimentar, do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, Ana Dâmaso rumou à total libertação da anorexia. Hoje, enfermeira de profissão, dedica-se ao cuidado dos doentes, recordando o período em que viveu aprisionada pela doença.

“Eu pensava assim: ‘Meu Deus, como é que já estive numa situação tão semelhante a esta e não tive nenhuma consideração pelo meu corpo’. A partir daí, todas as mudanças foram sendo muito boas e as experiências muito benéficas para a minha construção pessoal”, disse.

Anorexia é uma doença de homens?

Tipicamente encarada como uma doença do sexo feminino, a anorexia afeta também os homens. Estima-se que indivíduos do sexo masculino perfaçam cerca de dez por cento do total de pacientes, embora este número possa ser significativamente mais elevado.

António Neves, coordenador do Núcleo de Doenças do Comportamento Alimentar, do Hospital de Santa Maria, refere que, nas consultas, há menos de dez por cento de utentes do sexo masculino

“Existe menos exatamente porque existe este pré-conceito que as doenças de comportamento alimentar são doenças do sexo feminino”, adianta.

A psicóloga Lara Castro Nunes salienta, contudo, que, apesar dos motivos que desencadeiam a doença, homens e mulheres sofrem da mesma forma.

“Quer nos homens, quer nas mulheres, o que se passa dentro deles é um mal-estar muito grande, com eles não com o corpo. Manifesta-se no corpo, mas o problema é com a alma, no fundo.” 

Tudo começou com um desgosto de amor…

No Barreiro, a Record TV encontrou Diogo Rosa, um jovem que teve de lutar contra a anorexia. Um desgosto amoroso atirou-o à cama e foi aí que começaram a despertar os primeiros sintomas da doença.

“A minha reação foi estar no meu quarto sozinho, a ouvir música completamente deprimente e as minhas refeições acabaram basicamente ali. Só bebia água, mais nada. A minha mãe ficou alarmada, e eu dizia-lhe: ‘Isto passa, é passageiro, deixa-me estar aqui no meu canto sozinho’. Mas a minha mãe via os meus dias a passarem e eu a ficar pior”, conta.

1,84 metros vs 48 kg

Passou um mês. Um mês em que Diogo se alimentou com pouco mais do que água. Não se recorda de vários momentos deste processo. A mãe diz-lhe que vivia de uma forma completamente apática – ou chorava ou estava desligado do mundo que o rodeava.

“Não tinha completamente noção do que se estava a passar. Achava-me normal, simplesmente estava a viver um mau momento, só. Mas não tinha noção das dimensões que isto estava a tomar em termos físicos e emocionais”, salienta.

Corpo que não é meu 2
Diogo Rosa | © Record TV Europa

Dezoito anos. Um metro e oitenta e quatro centímetros. Quarenta e oito quilos. E a balança fez soar alarmes.

“Recordo-me de ver um 48… 48 quilos, sim! Eu dizia à minha mãe ‘tira-me o espelho do quarto’… Montras? Nem pensar! Evitava ao máximo… Nem a praia, que era uma coisa que eu adorava e fazia montes de dias durante o verão com os meus tios… Acabou… Deixei de ir à praia”, recorda Diogo.

Bastavam 500 gramas a menos para ficar internado no Hospital de Santa Maria. Diogo estava a um pequeno passo da anorexia extrema, mas decidiu lutar para ter uma vida saudável.

“De certo modo, este processo pós-anorexia até à atualidade ainda faz um pouco parte da superação porque eu vi o meu corpo anorético, certo? 

E agora, por causa da faculdade, recebi a possibilidade de modificar e de conciliar as coisas – a minha vida pessoal e os treinos – e eu não descartei. Disse porque não? Se podemos mudar, vamos mudar. Na mudança, há espaço para todos”, conta o jovem.

A anorexia é uma doença grave, que se pode prolongar durante vários anos 

Diogo é um dos poucos homens que assume ter sido vítima de uma anorexia nervosa. Vergonha e medo podem ser os grandes motivos para se esconderem de um universo muito associado a jovens mulheres.

“A figura masculina é a preponderante, é a forte em comparação com a figura feminina – o homem tem de ser de ferro. Acho que a sociedade masculina interiorizou muito esse paradigma, esse preconceito, porque os homens não são de ferro. Os homens também têm problemas e têm de solucioná-los”, opina.

Vanessa Mártires acredita que “as mulheres têm mais a idealização do corpo perfeito. Os homens estão mais associados a depressões, a problemas a nível familiar, do foro psicológico”.

Entre 2000 e 2014 estima-se que duplicaram os casos de anorexia nervosa. Também neste período, registaram-se 25 mortes devido à doença, na maioria dos casos, em doentes que deixaram o tratamento.

O processo da cura

Curar uma anorexia nervosa é um processo moroso, doloroso e, acima de tudo, de muito esforço do doente.

“Passa tudo por termos paciência connosco próprios. Irmos educando o nosso corpo, passo a passo, com aquilo que é compensador para nós. Algo muito importante é nós estarmos bem com o corpo que temos, independentemente da forma que ele tenha. Claro que hoje em dia nós sempre tivemos uma sociedade muito virada para as elites e quem é magro é que é bonito…”, afirma Ana.

Demorei anos a curar-me minimamente da minha anorexia – Diogo Rosa

Também Diogo considera que a doença passa pela libertação da mente: “Os meus médicos sempre estipularam ‘Diogo, tens de atingir este peso’, ‘Agora estás neste patamar, tens de atingir este’. É um processo lento, muito lento mesmo. Aquando da minha base emocional estável, eu percorro o meu caminho e se cair levanto-me.”

A psicóloga garante que “sair de uma doença tão grave, tão difícil, que implica uma batalha tão grande, dá-lhes uma sensação de força e uma perceção de que, de facto, são capazes de fazer muita coisa”.

A anorexia roubou-lhes corpo e a mente durante muito tempo. Manipulou-os e deixou-lhes marcas que podiam ter-lhes roubado a vida. A maioria das doenças psicológicas não se veem, mas a anorexia reflete-se no corpo, na imagem, no aspeto. Ana e Diogo combateram a doença e aprenderam a viver longe de um corpo que não era o deles.

FONTE© NomadSoul1, Envato