Tudo começou com um segurança da empresa onde trabalhava. Insinuava-se, fazia-lhe propostas indecentes, chegou mesmo a apalpá-la. Cassandra Miranda rejeitava os avanços, dizia que não, uma, duas, muitas e repetidas vezes.

Chegou mesmo a ameaçar com queixas à gerência, mas nem isso travou o assédio de que era alvo. “Quando eu disse que ia falar com a gerência ele parou de me apalpar, mas insinuava-se fora das câmaras, para não ser visto. Mandava-me beijos… Chegou a uma altura em que já estava insuportável”, conta.

Corria o ano de 2019 e este foi apenas o início de um longo calvário. 

“Espreitavam-me a tomar banho”

Dia após dia, semana após semana, durante meses que se transformaram em anos, o assédio foi companheiro assíduo de Cassandra. Vítima de sucessivos ataques, tornou-se no alvo preferido dos colegas de trabalho, que aproveitavam todos os pretextos para a perseguir e atormentar.

“Estava a receber ataques, sem apoio de ninguém… As pessoas ridicularizavam-me, faziam-me assédio sexual, só eu sei o que me diziam ao ouvido, muitas pessoas ali dentro… Desrespeitaram-me, apalparam-me, ridicularizaram-me, fizeram-me bullying…”

Mulher transgénero, Cassandra viu os seus direitos atropelados uma e outra vez. Empregada de mesa de uma conhecida pastelaria em Lisboa, o acesso ao balneário feminino foi-lhe sempre negado pela empresa. O balneário dos homens tornava-se então numa espécie de zona de caça, onde Cassandra era presa fácil para os seus agressores.

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Cassandra Miranda é uma das vítimas de assédio sexual em Portugal | © Record TV Europa

“Eles conseguiram estar à vontade comigo no balneário dos homens quando me foi negado ir para o balneário das senhoras, e estiveram à vontade para fazer tudo o que quiseram, tipo tirar-me a toalha, estarem nus atrás de mim, os homens a mostrar-me os órgãos sexuais,  a insinuarem-se para mim… Houve quem fosse aos balneários espreitar-me a tomar banho, eu a maquilhar-me e a pôr-se um atrás de mim todo nu, os outros a verem…”, conta.

Cassandra sofreu anos de assédio e abusos por parte dos colegas

Números do assédio

1 em cada 10 mulheres já foi vitima de assédio em Portugal;

82% dos agressores são homens;

127 denúncias de assédio sexual recebidas pela APAV em 2021;

14,4% das mulheres vítimas de assédio sexual sofreram a agressão no trabalho.

Fonte: Estudo ‘Assédio Sexual e Moral no Local de Trabalho em Portugal’, CIEG-ISCSP

As situações de assédio multiplicavam-se, deixando Cassandra encurralada, sem saber como se defender.

“Um é casado e andava a sugerir-me situações obscenas – como levar-me para cama, sexo… -, dizendo que seria um segredo nosso. Andava a fugir dele quando trabalhávamos à noite, parecia que via o demónio. Uma vez encostou-me à parede e eu fiquei sem saída, só o afastava e pensava como é que eu vou sair desta situação”, conta.

Falta de provas

O Centro Interdisciplinar de Estudos de Género situou Portugal entre os países da Europa com maior taxa de assédio. Os homens continuam a ser os principais agressores, sendo que uma em cada 10 mulheres já foi vítima e mais de 14% no local de trabalho.

No ano passado, a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) recebeu 127 denúncias de assédio sexual. A maioria das vítimas ainda teme denunciar, não só por medo de represálias, mas também pela dificuldade em provar.

Portugal é um dos países da Europa com maior taxa de assédio

“Este crime, uma das suas maiores dificuldades, é a questão da prova. Não só porque muitas destas situações ocorrem entre vítima e agressor, mas mesmo quando existem testemunhas, todos os intervenientes têm receio de fazer denúncia, por medo de represálias, de perder o trabalho… Se olharmos para os números é visível que a maioria dos inquéritos acaba por ser arquivado por falta de provas”, afirma Teresa Bettencourt, da APAV.

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Teresa Bettencourt trabalha na APAV e contacta diariamente com casos de pessoas que sofrem abusos| © Record TV Europa

“O nosso país não está dimensionado para apoiar estas vítimas para avançarem com as queixas. Muitas vezes, estas mulheres estão tão fragilizadas que só o facto de terem de verbalizar tudo aquilo que lhes aconteceu leva a que não prossigam com o processo e sem uma prova sustentável é impossível chegar a uma condenação, até pelo princípio do nosso Direito que é em caso de dúvida, deve sempre absolver-se o réu”, sustenta a advogada Sofia Matos.

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Sofia Matos é advogada e explica que, por vezes, é difícil produzir prova inequívoca de que houve assédio | © Record TV Europa

O medo manteve Cassandra refém do silêncio durante muito tempo.

“Tive medo na altura, tive medo das represálias. As pessoas são muito agressivas, tive medo que me agredissem. Tenho colegas que assistiram aos ataques que me fizeram e lamentavam… e diziam que o que eu estava a sofrer era horrível, mas para eu não desistir…”, recorda, em lágrimas.

Projeto de lei propõe autonomizar o crime de assédio sexual

Cassandra acusa a empresa de nada ter feito para impedir os constantes abusos e faltas de respeito por parte dos colegas.

“A gerência via e não fez nada, eles têm gravações e veem que eles andavam sempre de volta de mim… Por fim já me encostava à parede e eles rodeavam-me toda e eu só dizia ‘afastem-se de mim, não quero que me toquem’… Encostava-me à parede para isso não acontecer. Eu caí em várias armadilhas que os meus colegas me fizeram, e a gerência viu, os chefes viram e nada fizeram”, acusa Cassandra.

De acordo com a advogada Sofia Matos, quando as denúncias chegam ao conhecimento da entidade patronal, esta deve abrir um processo de inquérito para apurar a veracidade das mesmas. Contactada pela ‘Share’, a empresa em causa revela não ter conhecimento da existência de quaisquer denúncias de assédio sexual. Admite situações pontuais de ofensas a uma funcionária e um desentendimento da mesma com um antigo segurança. A empresa diz ainda ter em vigor um código de conduta para o combate ao assédio no trabalho e reitera que nenhuma das situações descritas configura assédio sexual, com o qual nunca seriam coniventes.

Autonomizar o assédio

Cassandra não desistiu. Quando sentiu que estava no limite, perdeu o medo e viu chegado o momento de pedir ajuda.

Recorri a várias instituições, uma delas foi a APAV, que me ajudou imenso. Eu estava de cabeça perdida e pegaram nas minhas coisas e tentaram ajudar-me o melhor possível, porque eu não sabia para quem me havia de dirigir, sentia-me sozinha neste meio todo”, desabafa Cassandra.

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Após ser vítima de abuso, Cassandra recebeu apoio na APAV | © Record TV Europa

Sentimento que é comum à maioria das vítimas, segundo a APAV: “Aquilo que é muito comum numa primeira fase é a vítima sentir-se muito desorientada, sem chão… Não sabem a quem recorrer. Muitas vezes, quando vêm ter connosco estão nesta primeira fase em que ainda não fizeram nada, e vêm numa perspetiva de perceber se a situação consubstancia sequer algum tipo de crime e se sim como podem proceder, a quem podem recorrer, quais são os seus direitos… É muito importante para a vítima saber que não é a única a passar por esta situação, é importante romper com o isolamento que é bastante típico”.

Para o psicólogo clínico Fernando Mesquita, é crucial que a vítima não se culpabilize.

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Fernando Mesquita, psicólogo clínico | © Record TV Europa

“É importante que em primeiro lugar a vítima se consciencialize de que não é responsável pelo que está a acontecer e que é responsável sim por agir, ou seja, dotar a vítima de capacidade para reagir. É importante também que ela consiga arranjar apoio social, duas ou três pessoas que a apoiem, valorizem e empoderem, no sentido de se afirma e de saber que tem direito a apresentar queixa”, defende.

Um projeto de lei entregue pelo PAN na Assembleia da República propõe autonomizar o crime de assédio sexual, passando assim a assumir-se como crime público, à semelhança do que aconteceu com a violência doméstica.

“A sociedade muitas vezes só acredita na existência do crime, e quando eu digo isto tem a ver com o facto de o agressor só acreditar que pode ser punido por um ato que pratica se alguém lhe disser ‘atenção que o que fazes é punido por lei’. A nossa sociedade é lenta a apoiar as vítimas e é lenta a exigir a autorregulação das empresas no sentido de que estas sejam obrigadas a sensibilizar a sua comunidade de trabalhadores para que este tipo de atitudes não aconteça”, afirma Sofia Matos.

“Não podemos ser objetos”

Em 2017, ganhou força o movimento ‘me too’, que levou à condenação do produtor Harvey Weinstein a 23 anos de prisão por agressão sexual. O movimento deu voz às vítimas e encorajou mulheres de todo o mundo a denunciar abusos e quebrar o silêncio.

“O movimento ‘me too’ foi muito importante, no sentido de alertar que isto ocorre em qualquer estrato social. Todos nós estamos sujeitos a ser vítimas de assédio. Depois há a tal vulgarização, que está ainda muitas vezes associada à descredibilização. Se o assédio fosse encarado como é algo que deve ser combatido, essas questões de que agora tudo é assédio já não se punham, põem-se porque ainda não estamos totalmente conscientes da importância que é este combate”, alerta Fernando Mesquita.

Movimento ‘Me Too’ encorajou mulheres de todo o mundo a quebrar o silêncio

“Ouvia-se muito comentários como este: ‘Ah, hoje em dia uma pessoa nem pode fazer um comentário a uma mulher bonita que é logo importunação sexual ou assédio’ – e isso não é verdade, assédio e importunação sexual são crimes sérios, e exigem uma gravidade que não é a mesma de um mero piropo ou comentário ou elogio a uma pessoa. Fazem-se muito esse tipo de comentários, mas só servem para desvalorizar o que a vítima está a sentir. O assédio exige um encadeamento de acontecimentos, não é um ato isolado e desvalorizarmos a situação como um mero piropo ou um hoje em dia tudo é assédio só faz com que as vítimas tenham receio em denunciar as situações porque sabem que muitas vezes não serão levadas a sério”, afirma Teresa Bettencourt.

Opinião corroborada por Sofia Matos: “É óbvio que o assédio ainda é visto culturalmente como uma coisa normal, é quase como o piropo, quando passa na rua e alguém lhe dá um piropo, há uns anos algumas mulheres até se sentiam um objeto admirado, mas é precisamente aqui, é o objeto, nós não podemos ser objetos”.

Jogo de poder

Anos de assédio e humilhação fizeram feridas que, apesar de invisíveis a olho nu, acabaram por deixar cicatriz.

“Tive de pedir férias forçadas, porque não estava bem, não conseguia trabalhar naquele ambiente tóxico, muito agressivo, muito violento. Não conseguia dormir, acordava a meio da noite não adormecia. Fui à psiquiatra e ela ajudou-me, medicou-me, consigo ter dias bons à conta dessa medicação”, diz Cassandra.

O assédio sexual deixa marcas psicológicas e pode mesmo provocar traumas na vítima. De acordo com Fernando Mesquita, pode surgir ansiedade, pânico, tendências mais depressivas e mesmo stresse pós-traumático. Cassandra conta-nos que as “marcas são profundas” e devastadoras.

“Eu estava num estado lastimável, nem conseguia contrapor… Sabe o que eles pareciam? As hienas todas a atacar ao mesmo tempo e eu a presa… Eles são cobardes, porque eu era uma pessoa e eles eram muitos…”, afirma e as lágrimas voltam a assomar-lhe aos olhos.

Hoje, Cassandra sabe que não está só. Dia após dia, semana após semana e mesmo que os meses se transformem em anos, não desiste de lutar por justiça e voltar a ser feliz: “Eles pensam que eu estou sozinha, não estou… Eu pensava que estava sozinha, não estou… Tenho amigas, organizações, a lei do meu lado e eu não sabia disso. Há uma ferida cá dentro que teima em não fechar, a psicóloga diz que vai demorar, mas eu quero voltar a ser uma pessoa feliz”.

Neste jogo de poder entre agressor e vítima, os agressores recorrem a todas as armas para insistir num ‘sim’ e ignoram toda e qualquer tentativa das vítimas dizerem que ‘não’.