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Dor sem nome

A morte de um filho é uma das perdas mais duras e difíceis de superar. O luto parental pode tornar-se patológico, mas há pais que conseguem ultrapassar o sofrimento e reaprender a viver. Duas mães partilharam com a 'Share' como foi viver esta dor sem nome.

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© Envato
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Na manhã em que recebeu um telefonema do hospital, Andreia Santos soube de imediato que alguma coisa se tinha passado. Do outro lado da linha, chegou o alerta de que Leonardo não estava bem.

Há 90 dias que lutava pela vida, a incubadora a fazer as vezes de berço, o corpinho magro repleto de fios e tubos que em nada podiam substituir os braços de uma mãe. A equipa de neonatologia ao telefone pouco adiantou, mas, nesse instante, Andreia soube que a luta chegara ao fim.

Andreia foi mãe com apenas 24 semanas de gestação, dando à luz um bebé que a medicina classifica de ‘grande prematuro’. Leonardo nasceu com 620 gramas, mas, depois de três meses na incubadora, acabou por não sobreviver | © Record TV Europa

90 dias

Corria o mês de junho quando Andreia, grávida de apenas 24 semanas, começou a sentir contrações. Trabalhava em pé cerca de dez horas por dia, o calor apertava e o médico já lhe tinha recomendado repouso. Dirigiu-se de imediato ao hospital onde, sem rodeios, uma enfermeira que lhe disse para não ter qualquer esperança, porque o filho ia nascer morto.

“Disseram-me que era praticamente impossível ele sobreviver com 24 semanas. Depois do parto, levaram o meu bebé, não tive qualquer contacto, nem sequer ouvi o chorinho dele e não me disseram nada”, recorda Andreia

Mas Leonardo sobreviveu. Pesava 620 gramas, a mãozinha pequenina apenas conseguia agarrar no mindinho da mãe. Como os pulmões não estavam totalmente formados, tinha de permanecer dia e noite na incubadora. O hospital tornou-se então na casa de Andreia. Ilegal no país, com a família do ‘outro lado do mundo’, no Brasil, viu-se obrigada a deixar o trabalho, para poder estar perto do filho. Foram 90 dias, das 8:00 às 20:00. O dia em que Leonardo morreu foi também o primeiro e único em que Andreia o segurou no colo.

No hospital, Leonardo era acompanhado dia e noite por uma equipa de neonatologia – os “tios e tias da unidade” | © D.R.

“Eu era a única mãe daquela sala que não podia ter o filho nos braços. Foi um momento de despedida, um momento de muita dor. Uma semana antes de o Leo falecer, o bebé que estava ao lado morreu e eu lembro-me de ver aquela mãe e sentir a dor dela, dizer que se fosse comigo eu não iria suportar. E passado uma semana, estava a viver a mesma situação que ela viveu.”

Restou o silêncio e um vazio cheio de nada. Onde antes existia esperança ficou apenas um grande pedaço de solidão. Andreia viu-se entregue a si mesma, tendo o sofrimento por companhia. “Foi um processo muito solitário. Ilegal, sem trabalho, o meu relacionamento acabou e eu acordei no dia a seguir ao sepultamento a pensar: ‘E agora’? O que vou fazer?’ Não tinha rede de apoio, ia para o meu quarto chorar e pensar que só queria um abraço e não tenho ninguém para mo dar.”

“Os pais sentem culpabilidade”

Andreia espelha serenidade, apesar dos nervos que a dominam. Conta-nos que chorou muito na véspera da entrevista, que receou não ser capaz de reviver e pôr em palavras a morte do filho. Dezoito anos passaram desde então. O tempo sossegou a dor da perda e trouxe conforto para enfrentar a ausência e a saudade.

“O que fica são saudades, muitas saudades. Ele estava em sofrimento, era muito egoísta eu querer que ele ficasse aqui. Conforta-me saber que esse sofrimento acabou, até porque ele teria muitas sequelas se sobrevivesse. Hoje sou grata, podia estar revoltada, mas disseram-me inicialmente que ele não ia sequer nascer com vida, e Deus deu-me deu 90 dias, então tenho esses dias como um presente”, desabafa Andreia

A psicóloga clínica Sofia Almeida ressalva que o luto de um filho, por ser algo inesperado e contranatura, é sempre um luto muito particular e que pode trazer uma grande dose de culpabilidade. “É uma experiência extremamente dolorosa e devastadora, traz um desespero muito grande. Surgem pensamentos ruminantes, persistentes, na tentativa de encontrar um significado para este mundo novo sem o filho. Os pais sentem uma culpabilidade muito grande e uma responsabilidade pessoal. Sentem-se perdidos, desorientados, sentem que não cumpriram o dever de pais, não conseguiram evitar a morte do filho. É de uma profunda solidão, vazio”.

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Sofia Almeida, psicóloga clínica, refere que o luto parental é um processo ainda mais doloroso, pois a perda de um filho é contranatura | © Record TV Europa

“Não há nada que ajude”

Era madrugada quando o toque do telefone arrancou Marília Henriques do sono. O marido não teve coragem de lhe dizer nada, não conseguiu falar e limitou-se a passar-lhe a chamada, quiçá numa tentativa de prolongar o momento que antecede a chegada da dor. Foi Patrícia, irmã de Vasco, que deu à mãe a terrível notícia. Do outro lado do mundo, em Los Angeles, Vasco tinha perdido a vida, aos 41 anos, num acidente de mota. Quando, mais tarde, teve acesso aos relatórios da polícia, Marília constatou que se tinha sentido mal precisamente nos últimos momentos de vida do filho.

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Marília perdeu o filho, Vasco, quando ele tinha 41 anos, devido a um acidente de mota | © D.R.

“Quando o Vasco teve o acidente, exatamente a essa hora, eu senti um mal-estar quando estava a jantar. Deitei-me muito cedo e acabei por adormecer, quando o meu marido se deitou eu até lhe disse: ‘Olha, estava a sonhar com o Vasco’. Já ele tinha morrido, mas nós ainda não sabíamos, só soubemos de madrugada.”

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Marília Henriques e o filho Vasco | © Record TV Europa

Vasco Lucas Nunes era um conhecido cineasta, realizador e produtor, que há quase duas décadas residia em Los Angeles, nos Estados Unidos. A sua morte, em março de 2016, foi largamente noticiada e mereceu mesmo uma mensagem de condolências por parte do Presidente da República. “Com o seu talento, Vasco Lucas Nunes contribuiu para levantar bem alto a bandeira de Portugal no mundo”, escreveu Marcelo Rebelo de Sousa, mas, para Marília, nem palavras nem gestos, nada houve na altura que pudesse atenuar a dor.

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Vasco e a irmã, Patrícia | © Record TV Europa

“Nos primeiros tempos não há nada que ajude. Acho que chorei tudo o que tinha a chorar na minha vida. Foi um luto muito duro. Há uma tendência de uma mãe que perde um filho para falar muito sobre isso e os amigos cansam-se de nos ouvir. As pessoas cansam-se de ouvir uma mãe a falar do filho que faleceu. Diziam-me ‘tens de ter muita força, coragem’, mas ninguém faz ideia nenhuma, é daquelas dores que só mesmo quem passa por elas. Preferia que me arrancassem braços, pernas, tudo, menos aquilo, é um sofrimento que não é igual a nenhum outro.”

O sofrimento é visível e a dor é palpável, quase se pode tocar. O corpo luta por sobreviver com uma mente que quer desistir. Em alturas como estas sobram as palavras, mas há coisas que ninguém deve dizer a uma mãe em luto.

Sofia Almeida frisa a importância de deixar as pessoas sentirem, ao invés de se fecharem nelas mesmas: “Não se deve dizer para não sentir, para não falar, porque por si só as pessoas têm já uma tendência para se isolarem. Estar presente muitas vezes não é dizer nada, é estar ali ao lado, a acompanhar a pessoa neste processo tão difícil”.

“É uma dor que não desejo nem ao meu pior inimigo. Se a pessoa não tem nada para dizer, abraça, acolhe. E não se deve dizer para não chorar. Tem de se chorar, tem de se viver o luto, isso é libertador. Dizer para não chorar ou que vai ficar tudo bem como se fosse magia não ajuda”, afirma Andreia 

“Ninguém sabe o que há de dizer. E o melhor é não dizer nada, dar um abraço. Quem não passa não pode dizer que imagina, às vezes as pessoas dizem ‘ah, imagino’… Não imaginam, ninguém imagina. Acho que é preferível dizer eu não imagino a sua dor, porque é essa a verdade”, diz Marília

“O Leo ensinou-me a ser mãe”

Morrer por dentro, sobreviver por fora. Perder um filho é perder também a perspetiva de futuro e a vontade de viver no presente. Encontrar um refúgio para a dor é uma das formas de a ultrapassar.

Marília nunca se deixou consumir pela raiva e a revolta não fazia parte dos seus dias que, diz-nos, “eram muito compridos para se estar a sofrer”. Refugiou-se na leitura e encontrou novas formas de se sentir perto do filho.

“Há um lugar que para mim é o meu ovo, é o meu sítio com ele, que é o meu carro. Entro no carro e vá onde for, nem que seja só as compras, dou por mim a falar com o Vasco”, conta.

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Marília com uma fotografia do filho Vasco, que faleceu há sete anos, nos EUA | © Record TV Europa

Esquecer é impossível, recordar é inevitável. Os filhos vivem para sempre na memória e no coração dos pais. Andreia sente que o filho veio cumprir um propósito e que a sua vida, ainda que curta, lhe transmitiu fortes ensinamentos. “O Leo ensinou-me a ser mãe, a amar. Ele foi-se, mas eu fiquei e se fiquei é porque havia muita vida a ser vivida. Continuei a sofrer, continuou a doer, vivi o luto, mas em secredo, era no meu quarto que eu rasgava o coração, chorava tudo o que tinha de chorar, mas continuei a dar-me a oportunidade de viver e não ir embora com o Leonardo. Ele foi muito amado, eu sei que fui amada por ele também e acredito que, como filho, o Leo não ia querer ver a mãe a desistir da vida.”

Dois anos depois, Andreia voltou a ser mãe, desta vez de uma menina. Gabriela sabe que teve um irmãozinho e a mãe fala-lhe dele várias vezes, mantendo assim viva a memória de Leonardo.

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Apesar do sofrimento pela perda do filho, Andreia voltou a ser mãe, dando à luz Gabriela. A jovem adolescente ajuda a progenitora a manter viva a memória de Leonardo | © Record TV Europa

“Quando eu chegava à neonatologia, ele podia estar a dormir mas acordava logo e agitava-se tanto que as enfermeiras até se impressionavam e diziam: ‘Ele sabe que a mãe chegou’. Na hora de ir embora, eu adormecia-o, cantava para ele e quando chegava à porta ele acordava, agitava-se novamente e eu tinha de voltar. Ele sabia quando eu chegava e ele sabia quando eu estava a ir embora”, recorda.

Orfandade para a vida

A lei, alterada no ano passado, aumentou de cinco para 20 o número de dias que os pais podem faltar ao trabalho depois da morte de um filho. Sofia Almeida não considera um período de tempo justo e afirma que não existem apoios suficientes para os pais.

“Como é que se diz a um pai que recupere em 20 dias? Em 20 dias há tanta coisa a acontecer, fecha-se um ciclo, inesperado, e depois vai-se logo trabalhar. Acho que não é justo, acho que precisavam de mais tempo, devia haver mais apoios”, defende.

Podem passar dias, meses e anos, mas a orfandade de um pai e de uma mãe é para a vida. Não há estratégias ou fórmulas milagrosas para enfrentar a morte de um filho. É preciso devolver significado ao mundo e reaprender a viver

Andreia deixa o conforto de que o tempo é um bom aliado para transformar a dor em saudade: “Primeiro é viver o luto, chorar, permitir sentir a dor, mas entender que a vida não acabou. Tentar lembrar das coisas boas, as memórias boas, agarrar-se a isso, entender que com o tempo a dor transforma-se em saudade e ainda há muita vida. No meu caso, pensar como o filho gostaria de ver a mãe traz muito conforto. Um filho não quer ver a mãe sofrer, quer ver a mãe a viver e ser feliz”.

Para Marília, a dor está sempre presente, é companheira ao longo dos anos. O segredo está em aprender a viver com ela. “A saudade não passa. É permanente. E é difícil. Quando as saudades atacam, o que faço é lembrar-me de que ele não gostaria que eu estivesse triste. A dor não diminui, a gente aprende a viver com ela. O meu filho faleceu há sete anos. É preciso aprender a viver com esse buraco que ficou.”

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