Em fevereiro deste ano o mundo era deslumbrado por Kamila Valieva. Uma jovem patinadora russa de apenas 15 que era notícia por todo o mundo, ao tornar-se na primeira mulher a fazer, com sucesso, um salto quadruplo na competição. Um prodígio, que juntava força a uma segurança e graciosidade pouco comuns, principalmente num talento tão jovem.

Kamila Valieva venceu os programas curto e livre da prova feminina da competição por equipas, levando a equipa russa a conseguir a medalha de ouro no evento. Valieva, já conhecida do mundo de patinagem artística no gelo, uma vez que era atual campeã europeia e campeã russa em título, passava a ser conhecida do grande público, sendo uma das atletas mais faladas durante os Jogos Olímpicos.

Na sua primeira época sénior, Valieva parecia talhada para um estrelato precoce. Mas o que parecia um sonho rapidamente tornou-se num pesadelo, quando a atleta russa testou positivo num controlo antidoping. Uma das amostras da atleta acusou trimetazidina, uma substância proibida para atletas em competição, utilizada primariamente para angina de peito, que pode fazer aumentar o rendimento desportivo.

 A polémica estava instalada e o auge de Valieva rapidamente se tornou um calvário para a jovem de 15 anos, com sucessivos apelos de suspensão imediata e retirada do título olímpico à equipa russa. Apesar do mediatismo do caso, Kamila Valieva continuou a treinar no palco Olímpico e foi permitida a sua participação no evento individual feminino. A entrega das medalhas da prova por equipas foi suspensa e, caso Valieva figurasse nas três primeiras classificadas na prova individual feminina, a cerimónia de entrega de medalhes também não seria realizada.  

Kamila Valieva era a favorita para levar o ouro olímpico, num pódio completado pelas atletas conterrâneas, Alexandra Trusova e Anna Shcherbakova, ambas com 17 anos na altura. As três jovens russas eram treinadas pela mesma equipa, liderada pela treinadora russa Eteri Tudberize e a sua equipa.

Mas a adolescente não soube lidar com a pressão da imprensa internacional e do público em geral. Mesmo ficando em primeiro lugar após o programa curto, Kamila Valieva fez um programa Livre desastroso, deixando-a, no somatório das duas provas, em quarto lugar e fora das medalhas.

A investigação sobre o caso de alegado doping de Valieva foi direcionado para a RUSSADA, agência antidoping da Rússia, que até hoje não se pronunciou mais sobre o caso de forma oficial, não tendo cumprido a data-limite de 4 de novembro para apresentar uma conclusão para o caso.

AMA pede quatro anos de suspensão para Valieva 

O Tribunal Arbitral do Desporto, que detém o caso da patinadora russa, disse durante esta semana que a Agência Mundial Antidopagem pretende a suspensão de Kamila Valieva até quatro anos, a contar da data da decisão. Uma sanção que, caso seja confirmada, impedirá a atleta de participar nos próximos Jogos Olímpicos de Inverno, em 2026, isto se não terminar com a carreira da atleta. A AMA pretende ainda desqualificar Valieva das competições em que participou e retirar-lhe os títulos conseguidos desde o último Natal, altura em que foi recolhida a amostra que testou positivo no controlo antidoping.

Kamila Valieva testou positivo para a trimetazidina, substância utlizada para tratar doença cardíaca, como angina de peito e que está no grupo dos medicamentos normalmente designados por vasodilatadores, o que poderá melhorar o fluxo sanguíneo e, dessa forma, aumentar o rendimento desportivo.

Atualmente Kamila Valieva compete de forma profissional em campeonatos russos, tal como as restantes atletas daquele país, uma vez que foram impedidas de participar em competições internacionais pela ISU, entidade responsável pela organização dos campeonatos internacionais, devido à guerra na Ucrânia.

Após os jogos Olímpicos foi condecorada por Vladimir Putin e é considerada um símbolo russo, com entidades desportivas do país a negarem a utilização de qualquer tipo de droga que pudesse melhor o rendimento da atleta.

Quem é Kamila?

Kamila Valieva tem agora 16 anos, mas começou a patinar com cincos anos, depois de a mãe a colocar num clube de patinagem na cidade russa de Kazan. Parece precoce, mas na Rússia, país onde a patinagem é altamente popular, há crianças a começar a patinar com apenas dois.

Kamila Valieva mostrou potencial e, tal como acontece com muitas outras jovens que revelem talento para a modalidade, foi enviada para Moscovo para treinar a tempo inteiro, relegando para segundo plano a família e os estudos.

A pequena Kamila continuou a revelar-se competente nas provas de patinagem assegurando com apenas 12 anos, a entrada para o grupo de elite de Eteri, onde muitas jovens ambicionam entrar, mas poucas conseguem. A treinadora russa pode dar-se ao luxo de escolher e negar entrada de jovens atletas na sua escola, dando preferência apenas aquelas que, na sua ótica, têm as características para se tornarem campeãs.

A aposta em Kamila Valieva revelou-se certeira, com a jovem a recolher títulos, a nível júnior e na sua primeira época sénior, em 2018, na qual ganhou todas as provas do Grande Prémio onde participou, inclusive a final, foi a vencedora do campeonato nacional da Rússia e foi campeã europeia, tudo provas realizadas antes dos Jogos Olímpicos.

Eteri Tutberize: Uma treinadora polémica

A polémica com Kamila Valieva não se cinge apenas ao uso ou não de uma substância proibida. Na verdade, essa responsabilidade nunca poderia ser imputada apenas a Kamila, visto que, na altura, tratava-se apenas de uma jovem de 15 anos.

As atenções viraram-se sim para a sua equipa de treinadores, liderada por Eteri Tutberize, cujos métodos de treino vêm há muito a ser questionados pela comunidade desportiva e fãs da patinagem.

Eteri destacou-se nos últimos anos nas competições russas e a nível mundial, apresentando de forma sistemática, atletas capazes de fazer elementos de grande dificuldade, onde se encontram os saltos quádruplos, até há pouco tempo realizados apenas por homens.

O primeiro nome de grande destaque lançado por Eteri Tutberize e a sua equipa da conceituada escola Sambo 70, foi Yulia Lipnitiskaya que em 2014, em Sochi, levou a equipa russa de patinagem até ao ouro Olímpico. Com apenas 15 anos, corpo franzino e uma flexibilidade quase inexplicável, a jovem russa encantou o mundo, ganhando destaque entre as notícias desportivas. Na época seguinte, começou a diminuir o seu rendimento desportivo, com lesões consecutivas. Acabaria por reformar-se em 2017, com apenas 18 anos, com um diagnóstico de anorexia crónica.

Em 2018, a luta feroz pela medalha de ouro foi entre Alina Zagitova e Evgenia Medvedeva, ambas treinadas por Eteri. Aos 15 anos, Zagitova viria a tornar-se campeã Olímpica com Medvedeva a levar a prata. Ambas tentaram continuar a patinar, mas acabariam por deixar as carreiras competitivas muito cedo, com Zagitova a completar apenas duas épocas a nível sénior. Evegnia Medvedeva, dois anos mais velha, debateu-se com várias lesões e não foi capaz de continuar a competir ao mais alto nível.

Mas isso não seria problema para a treinadora russa, que rapidamente foi apresentando de forma contínua atletas que se iam substituindo, como se de uma fábrica se tratasse. O modelo era sempre o mesmo: novas, pequenas, magras e capazes de fazer elementos de dificuldade acrescida, que por consequência oferecem mais pontos durante as competições.

Alexandra Trusova, atleta que ficou com a medalha de prata nas últimas olimpíadas, fez no seu programa livre cinco saltos quádruplos, um feito nunca antes alcançado por uma mulher e conseguido apenas por Nathan Chen, medalha de ouro da competição masculina.

Além da força, o segredo parece estar na estrutura destas atletas. O seu rácio ideal de força/peso e estatura leve faz com que seja mais fácil para elas girar o corpo.

As atletas de Eteri são pesadas várias vezes ao dia, têm uma alimentação controlada, com relatos de que as jovens chegam a passar fome de forma a conseguirem manter o peso. Além disto, estas jovens sujeitam-se a treinos de longas horas por dia, que podem chegar às 12 por dia, num regime a tempo inteiro, sendo que os estudos acabam por ser uma espécie de part-time.

O regime de treinos destas atletas na Rússia é conhecido pelas suas exigências, mas os métodos de Eteri, a quem foi atribuída a Ordem de Honra da Rússia por Vladimir Putin em 2018, parecem ser mais questionáveis, devido ao curto ciclo de vida competitiva das suas atletas.

Em relação aos últimos Jogos Olímpicos, e apesar do estrelato, Alexandra Trusova, que continua a competir, optou por mudar de treinadora esta época. Já Anna Shcherbakova, que conseguiu a medalha de ouro, ao fazer dois programas limpos, apesar de ter menos elementos de grande dificuldade em relação à colega, não voltou aos ringues de patinagem, debatendo-se com graves lesões que já obrigaram a intervenções cirúrgicas.

Além das lesões a quebra nos resultados desportivos parece também assombrar estas jovens, cujo corpo acaba por se desenvolver com a idade, tornando-as mais altas e robustas e, consequentemente mais lentas e pesadas, retirando-lhes rotatividade e competitividade face às colegas mais jovens.

Eteri Tutberize e a sua equipa acabam por ser a imagem de um desporto brutal e muitas vezes cruel, cuja beleza das suas apresentações escondem a dureza dos treinos e vidas destas atletas.

Kamila Valieva é apenas mais um dos rostos desta impiedosa modalidade, com uma carreira desportiva que pode muito bem ter acabado, mesmo antes sequer de ter começado.

FONTEReuters