A ‘Share Magazine’ foi ao encontro de comerciantes de algumas das zonas mais turísticas da capital portuguesa, como a Baixa Pombalina e o Chiado, que viram os seus negócios afetados pela falta de clientes e quebra abrupta de receitas. Relatos de quem teve de se adaptar a uma nova realidade pós-pandemia e assiste a uma aparente retoma económica. Numa Lisboa em mudança.

“Ai a minha Baixa, minha rica Baixa… Isto não tem nada a ver com o que existia. Antes era só comércio, agora mais de metade das lojas estão fechadas. Temos aqui dois quarteirões que ainda mantêm o comércio. Tudo isto era comércio, neste momento embora haja lojas abertas, é mais aquele tipo de comércio oriental”, diz Alberto Nabais, um dos funcionários mais antigos de uma retrosaria da Baixa de Lisboa.

Minha rica Baixa...
Alberto Nabais | © Record TV Europa

E muitos visitantes ficam surpreendidos com o cenário que encontram. “Chegam aqui muitas vezes e já não existe a loja. Já tem acontecido. Vêm aqui e perguntam: ‘Onde é que está a loja ‘tal’? Já fechou?’ Quando isso acontece, é aquela desilusão”, afirma o funcionário.

Marcas da pandemia

“O período da pandemia foi muito duro para a Baixa de Lisboa e para o Chiado porque esta zona geográfica vivia muito comercialmente do turismo e estava muito ligada ao cliente de fora. O facto de o turismo ter desaparecido completamente tornou as coisas mais difíceis, ao contrário do que aconteceu em outras zonas da cidade, por exemplo Campo de Ourique, Alcântara, Ajuda, Alvalade, Arroios… É uma zona que não tem habitantes portugueses e portanto, como não é uma zona habitacional, foi muito difícil a pandemia aqui na Baixa”, diz Vasco Mello, Presidente da Associação de Dinamização da Baixa Pombalina.

Minha rica Baixa...
Vasco Mello | © Record TV Europa

O coração de Lisboa voltou a bater nos últimos meses, mas nos últimos dois anos ficaram pelo caminho muitas das artérias que, a custo, ainda o faziam pulsar. Falamos de espaços comerciais, de lojas históricas, transversais a todas as áreas, que não aguentaram a chegada da pandemia e, consequentemente, a crise. A perda de faturação, as rendas elevadas e o turismo têm ditado lentamente a morte de muitos destes negócios.

A loja de Vítor Silva, situada na Rua Garrett, tinha 10 anos. Não sobreviveu ao primeiro confinamento. De um momento para o outro, as receitas caíram 40%. As vendas ao postigo não foram suficientes para manter o espaço aberto. No final de 2021, manteve duas lojas a funcionar, embora com muitas dificuldades.

Minha rica Baixa...
Vítor Silva | © Record TV Europa

“Muito difícil. Olhe, começámos por cortar custos, mais custos. Acabámos por ter de trabalhar muito mais. Isto neste momento, nós tínhamos mais lojas. Encerrámos lojas para conseguir manter estes pontos que eram para nós também os pontos principais, mas foi com muito trabalho. Nós neste momento assistimos à Função Pública que trabalha 35 horas por semana. Pois olhe, eu devo trabalhar umas 100”, lamenta o empresário.

É preciso recuar mais de 30 anos para que Vítor se lembre de uma catástrofe como a que o Chiado enfrentou recentemente. “Nós abrimos em 1988, dois meses antes do incêndio do Chiado. Na altura foi idêntico ao que estamos a passar agora. Penso que o impacto é mais negativo porque a área identificada acabou por ser destruída na envolvente e os acessos foram cortados. Durante 6/7 anos ficámos com alguns acessos cortados aqui. No entanto, em termos de impacto foi idêntico ao da pandemia, com particularidades diferentes”, recorda.

Uma batalha que voltou a ter pela frente. Ao andar pelas ruas da Baixa e do Chiado, Vítor encontrava o mesmo cenário desolador que recorda da época do incêndio e que refletia o impacto da pandemia no comércio.

Minha rica Baixa...
Rua Augusta, em Lisboa, deserta durante o confinamento | © Envato

Muitos não resistiram

Com os seus negócios fechados meses a fio e sem pessoas a quem vender, muitos estabelecimentos foram obrigados a fechar portas durante a pandemia. “Não tem nada a ver. Tudo isto era comércio, neste momento embora haja muitas lojas abertas, é mais vocacionado para turistas. São aqueles negócios em que os proprietários são asiáticos”, esclarece Alberto Nabais.

“Desde o início da pandemia, nós até dezembro de 2021 tínhamos um cálculo de 100 e tal lojas fechadas”, acrescenta Vasco Mello.

“O sector da moda foi daqueles mais gravemente atingido pelos efeitos da pandemia, ao contrário da restauração. Há muito a ideia de que a restauração sofreu um impacto muito grande, mas soube ter outros canais. Canais esses que no caso da moda não existiram”, salienta o presidente da Associação de Dinamização da Baixa Pombalina.

Rendas elevadas

As rendas elevadas e os apoios que tardaram em chegar foram outros dos fatores que pesaram na hora de decidir entre fechar, ou não, os espaços. “Não fui eu que decidi, foi a vida que me fez tomar essa decisão. De repente, tínhamos uma loja vazia, sem ninguém, com todas as despesas para pagar que eram bastante elevadas. Não fazia sentido, não era suportável sequer. Tivemos de reduzir-nos à nossa insignificância, fazer as malas e rumar para outro sentido. Às vezes é preciso, se calhar, desacelerarmos um bocadinho para depois recuperarmos o passo de outra forma”, afirma Nuno Gama.

Minha rica Baixa
Nuno Gama | © Record TV Europa

O estilista foi um dos que não aguentou. Três anos depois de abrir uma loja no Chiado, acabou por ter de fechar. “Ainda resistimos até dezembro, mas já era muito difícil. Já não conseguíamos. Ser não o tivéssemos feito não teríamos sobrevivido. Os preços eram incomportáveis atendendo à situação que estávamos a viver”, lamenta.

Nuno Gama acabou por encontrar um novo espaço na zona da Estefânia onde paga metade da renda pelo dobro do espaço. “Quando aqui entrei fiquei apaixonado pelo sítio, por ter estas características tão especiais que tem, por ter um jardim em frente que é quase privativo aqui da loja e por estar numa zona tranquila”, destaca o empresário.

As rendas na zona geográfica da Baixa Pombalina podem atingir valores astronómicos. “Depende dos metros quadrados, mas vão de 5 mil euros a 29 mil. Se uma loja tiver 300 m2, há quem esteja a pedir 29 mil euros em zonas ‘prime‘”, diz Vasco Mello.

Futuro sombrio

Rosa Amélia Ferreira está à frente da loja de discos Amália, um dos espaços históricos da Baixa. Os dias passam e sobreviver tem sido mais difícil. “Vamos sobrevivendo por amor à camisola. É só por isso, por amor à camisola. Mas agora presentemente, o meu senhorio mandou-me uma carta registada a dizer que estava a acabar o contrato e que eu tinha de sair”, lamenta a lojista.

“Ele [o senhorio] quando comprou o prédio pedia-me 2 500 euros já em 2010. É insuportável. Não pode ser – Rosa Amélia Ferreira”

É com algum receio que encara os tempos que se avizinham e o futuro da família. “Não por mim, que já tenho 77 anos, mas é pela minha família, porque a minha filha ainda é nova. Ela ainda não está reformada e faltam-lhe uns anos. Tenho dois netos e é claro que temo por eles. Por eles sim, por mim não tanto”, afirma Rosa.

Rosa Amélia Ferreira
Rosa Amélia Ferreira | © Record TV Europa

O mesmo aconteceu em várias lojas históricas da Baixa. “É difícil explicar porque, daquilo que percebo, com o turismo os senhorios começaram a despejar ou a pedir rendas exorbitantes. Sei de casas aqui que não renovaram as rendas. Até estão a fazer obras nos prédios para a hotelaria, hostels. Há muitos exemplos desses nesta rua. Muitos, muitos mesmo”, destaca Alberto Nabais.

Nas artérias principais reinou durante muito tempo o silêncio. “Mesmo na própria rua andava pouca gente, e ficávamos um bocadinho desiludidos. Não entravam aqui, não via entrar nos vizinhos. Na rua, o movimento era pouco. Isto estava mesmo mau. Aí é que a gente ficava mais desiludidos”, recorda.

Os tempos estão a mudar. E há o risco de a identidade desta zona histórica de Lisboa acabar por perder-se no tempo. “Acho que a Baixa está a perder completamente a identidade. Não sei dizer como será o futuro, porque se calhar daqui a dez anos eu já não estou cá também. A continuar assim transforma-se em algum subúrbio da capital”, afirma a lojista.

Praça do Comércio, em Lisboa
Praça do Comércio, em Lisboa | © Envato

“Parece que de repente temos duas Lisboas: a dos portugueses e a dos estrangeiros. Só que a realidade de uns e de outros é completamente desproporcional”, destaca Nuno Gama.

“Se há esta vontade de manter alguma tradição – a ‘nossa’ tradição, que aliás já foi explícita – terá de haver aspetos práticos de apoio. Ora bem, pode passar por marketing, uma boa divulgação destas lojas, de forma a que tenham mais clientes”, sugere Vítor Silva.

Mas para que o coração de Lisboa volte a bater da mesma forma, quem ainda resiste promete não desistir. “O Chiado está no roteiro, no ADN de Lisboa, o coração de Lisboa, aqui está a pulsar… E obviamente a baixa pombalina. E nós vamos pegar no que for possível, vamos puxar lustro para mostrar os aspetos positivos, tentar contrariar os negativos, anulá-los dentro do possível”, conclui o empresário. 

“A Baixa vai evoluir. Como é que vai evoluir e em que moldes é que não sei”, perspetiva Vasco Mello

Dois anos após o primeiro caso de covid ser diagnosticado em Portugal, aos poucos, os turistas estão a voltar, as lojas a encher-se de pessoas e as filas regressaram. Tudo indicadores de que os efeitos da crise pandémica na economia portuguesa poderão pertencer ao passado e que 2022 deverá marcar o regresso ao ‘velho’ normal.  

FONTE© Envato