Num movimento firme, a lâmina afiada do machado faz um golpe certeiro na casca do sobreiro. O gesto repete-se o número necessário de vezes até que se extraia a maior superfície de cortiça possível, inteira, deixando o tronco da árvore praticamente nu.

Apesar da aparente violência do processo, o descortiçamento não provoca danos à árvore, nem ao ecossistema. Antes pelo contrário. Para além de ser ambientalmente sustentável, a cortiça cria emprego, gera riqueza local e é um dos motores das exportações portuguesas.

Com a destreza de um cirurgião, os ‘descortiçadores’ manuseiam com mestria o machado, a única ferramenta que utilizam para retirar a casca do sobreiro. A primeira extração só pode ser feita após os primeiros 25 anos de vida da árvore. Daí por diante, procede-se à recolha de nove em nove anos.

À primeira retirada, dá-se à cortiça o nome de ‘virgem’ e à seguinte ‘secundeira’ – embora de uma para a outra haja um acréscimo de qualidade da matéria-prima, em ambas o produto conseguido, pelas suas características, tem baixo valor comercial. É só a partir da terceira extração que a cortiça evidencia o seu potencial máximo e o sobreiro durante os 150 anos seguintes será alvo de mais de 15 descortiçamentos. 

Negócio de milhões

O montado de sobro é um ecossistema florestal que permite uma assinalável biodiversidade. Portugal detém 34% da área mundial (correspondente a 736 mil hectares e 23% da floresta nacional) deste território. O sobreiro, espécie típica da região mediterrânica Ocidental, é o elemento central desta paisagem.

Para além do nosso país, existe em Espanha, França, Itália, Marrocos, Argélia e Tunísia. A organização internacional World Wild Fund for Nature estima que destas florestas dependa, direta ou indiretamente, a subsistência de 100 mil pessoas. Em Portugal, país que detém a maior área de montado do mundo, presume-se que existam cerca de 17 mil postos de trabalho relacionados com a cortiça.

Ouro que nasce nas árvores
Rolhas de cortiça | © Envato

Símbolo nacional

Principais propriedades da cortiça
Pelos seus múltiplos benefícios, a cortiça é uma matéria-prima muito usada em várias indústrias.

 

Leve
Mais de metade do seu volume é ar. Pesa apenas 0,16 gramas por centímetro cúbico e consegue flutuar.

 

Impermeável
Totalmente impermeável a líquidos e bastante eficaz com gases, a sua resistência à humidade permite-lhe envelhecer sem se deteriorar.

 

Elástica
A cortiça pode ser comprimida até cerca de metade da sua largura, sem perder flexibilidade. Devido à sua resiliência, recupera a forma e volume iniciais após deixar de ser pressionada. É o único sólido que sendo comprimido de um lado não aumenta de volume do outro. Dada a sua elasticidade é capaz de se adaptar às variações de temperatura e pressão sem sofrer transformações.

 

Isolante térmico e acústico
Os 40 milhões de células em cada centímetro cúbico de cortiça funcionam como um autêntico absorvedor de decibéis, tornando-a num excelente isolante de som e vibrações.
A sua estrutura molecular permite absorver calor e conservá-lo por muito tempo.

 

De combustão lenta
A lenta combustão da cortiça torna-a num retardador natural do fogo e uma espécie de barreira contra incêndios. A cortiça não faz chama e não liberta gases tóxicos durante
a combustão.

 

Antiestática e hipoalergénica
Não absorve o pó e evita o aparecimento de ácaros e, por isso, contribui para a proteção contra alergias. É também resistente ao atrito e ao desgaste.

Fonte: Associação Portuguesa da Cortiça

Ao contrário de outras árvores, a maior riqueza do sobreiro não está no fruto (a bolota, que é usada para a propagação da espécie, alimento de animais e fabrico de óleos culinários), mas sim na casca do seu tronco – um material cem por cento natural, com características únicas.

O sobreiro é merecedor da classificação de Património Nacional em Portugal e está legalmente protegido desde a Idade Média, sendo o seu abate proibido. É também a Árvore Nacional de Portugal desde dezembro de 2011.

Dele diz-se que muito dá e pouco pede, também porque o montado de sobro tem um papel ambiental determinante, já que, entre outras características, é capaz de fixar até 14 milhões de toneladas de CO2 por ano, contribui para o combate ao aquecimento global, serve de barreira aos incêndios florestais e regula o ciclo hidrológico.

Apesar de o descortiçamento ser um dos trabalhos agrícolas mais bem remunerados, é cada vez mais difícil encontrar jovens que estejam dispostos a assegurar o futuro desta atividade, à qual muitos chamam arte, pela habilidade e agilidade que exige.

A dureza deste ofício sazonal é uma das causas deste problema de difícil resolução, já que dada a especificidade e delicadeza do processo de extração da cortiça, não existem máquinas que substituam o trabalho humano.

Durante os meses de recolha, as equipas de ‘tiradores’ de cortiça partem para o montado logo pela manhã, a fim de evitarem as horas de maior calor. Com a lâmina dos machados bem afiada, estes trabalhadores rurais passam o dia a despir as árvores do seu precioso ‘ouro’. No chão ou empoleirados em escadotes, retiram as maiores peças de cortiça que conseguem, evitando que se quebrem.

Vedante de excelência

Depois de retirada da árvore, a cortiça é escolhida e empilhada. E, de acordo com as suas características, encaminhada para ser transformada em vários produtos. Detentora de propriedades únicas [ver caixa], indisponíveis em qualquer outra matéria-prima ou produto conhecido pelo Homem, a cortiça pode ter mil e uma aplicações.

As rolhas, absorvidas sobretudo pelos mercados dos vinhos e de outras bebidas alcoólicas, são uma das mais tradicionais. As rolhas naturais são o topo de gama deste produto vedante, pois são feitas com uma peça única de cortiça da melhor qualidade. Depois, existem também rolhas técnicas, em que os topos são feitos com cortiça natural e o corpo com material aglomerado desta matéria-prima.

Neste tipo de produto, a utilização de cortiça traz vantagens que valorizam o sabor da bebida, visto que a rolha se expande, adaptando-se ao gargalo (em oposição às rolhas de plástico, mais baratas e tradicionalmente utilizadas em bebidas de gamas inferiores) e impedindo o contacto do líquido com o ar.

Depois existem os aglomerados, provenientes das primeira e segunda cascas do sobreiro, do refugo, de aparas e dos desperdícios de cortiça. Estes podem ser misturados com borracha, plástico, asfalto, cimento, resinas, colas, entre outros, dando origem a materiais compósitos, aplicáveis a fins tão diversos como a construção civil, moda ou para a produção de outros artigos de uso quotidiano.

Ouro que nasce nas árvores
Sobreiro descortiçado | © Envato

Usada em naves espaciais

Num cruzamento feliz da tradição com a modernidade, a imensidão de potencialidades da cortiça tem merecido a atenção da Ciência. O desenvolvimento de materiais que incorporam tecnologia de ponta tem permitido que a cortiça assuma um papel de protagonista em várias indústrias, através de novas soluções e aplicações.

De acordo com a Associação Portuguesa da Cortiça, nos últimos anos foram investidos mais de 500 milhões de euros no estudo desta matéria-prima de eleição. Este novo saber tem permitido desenvolver produtos para fins tão específicos, como a indústria aeroespacial – a NASA e a Agência Espacial Europeia utilizam cortiça para proteger o interior das suas naves dos efeitos térmicos próprios das explorações extraterrestres -, indústria automóvel – aplicação ao nível dos acabamentos de camadas finas de cortiça em substituição do couro – ou equipamentos desportivos para a alta competição – por exemplo, caiaques Olímpicos e pranchas de surf.

Devido às suas características hipoalergénicas, até na composição de produtos cosméticos é possível incluir cortiça. Face a todas estas soluções, esta matéria-prima está a protagonizar uma revolução no mundo dos materiais. E Portugal está na vanguarda dessa profunda transformação, pois é responsável pela exportação da maioria de toda a cortiça disponível no mercado, assumindo-se como líder mundial.

 

FONTE© Envato