Guerra na Ucrânia: Quase dois anos de um conflito que luta contra o esquecimento

Guerra na Ucrânia: Quase dois anos de um conflito que luta contra o esquecimento
© Reuters

Ao fim de 636 dias, a guerra na Ucrânia está bloqueada com poucos ganhos no terreno. Um conflito sem negociações à vista em que ucranianos lutam contra a fadiga e perda de relevo mediático. Russos apostam no tempo.

Ao conseguir deslocar as suas tropas para a margem esquerda do rio Dnieper, a Ucrânia parece abrir uma nova frente numa região onde já foi feliz, quando, no final do ano passado, libertou a cidade de Kherson, que tinha sido a primeira a cair no início da invasão russa, em fevereiro de 2022.

Mas o sucesso ainda por consolidar em Kherson será o único a reivindicar por Kyiv no sul do país, onde o seu Exército faz progressões residuais desde a contraofensiva lançada em junho na província de Zaporijia contra linhas russas altamente fortificadas, ao mesmo tempo que procura resistir à desgastante investida de Moscovo no leste.

Avdiivka tornou-se no novo centro da guerra na Ucrânia, quando os russos lançaram todas as suas energias nesta pequena cidade da província de Donetsk, sacrificando perdas estimadas nas dezenas de milhares de soldados, numa batalha metro a metro e a mais sangrenta desde Bakhmut, que tinha sido, em maio, a última vitória assinalável da Rússia, graças ao grupo mercenário Wagner.

“Houve muitas batalhas, mas penso que esta [Avdiivka] é uma das mais importantes. Na minha opinião, é a última tentativa da Rússia de tomar a iniciativa na frente”, disse no final de outubro Mykhailo Podolyak, conselheiro do Presidente da Ucrânia.

Frio, trincheiras e muitas baixas

Com o inverno à vista, antes do gelo, do frio e da previsível repetição da ‘chuva’ de projéteis russos contra infraestruturas energéticas ucranianas – que no ano passado danificaram 60% da capacidade de produção elétrica -, a frente da guerra desenvolve-se ao longo de cerca de mil quilómetros, mas sem alterações decisivas de parte a parte, enquanto Kyiv procura explicar o progresso de apenas 17 quilómetros desde junho, já com equipamento moderno fornecido pelos aliados.

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Soldados ucranianos num ataque contra forças russas | © Reuters

O conflito “está agora gradualmente a transformar-se numa guerra de posições”, escreveu no início do mês o comandante das forças armadas Ucranianas, Valeri Zaluzhni, na revista ‘The Economist’, comparando a situação militar às trincheiras da I Guerra Mundial, em que só um grande avanço tecnológico permitiria desbloquear o atual “ponto morto”.

Zaluzhni admitiu que subestimou a Rússia ao acreditar que só poderia deter o exército inimigo sangrando-o: “Foi o meu erro. A Rússia perdeu pelo menos 150 mil soldados. Em qualquer outro país, esse tipo de perda teria interrompido a guerra, mas não na Rússia, onde a vida não vale nada e onde o Presidente Vladimir Putin é guiado pelas duas guerras mundiais, nas quais o país perdeu dezenas de milhões de pessoas”, comentou.

O impasse dá tempo à Rússia para a sua indústria de armamento e usar quase meio milhão de soldados que, segundo o vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia, Dmitri Medvedev, se registaram desde janeiro nos centros de recrutamento para repor os largos milhares de baixas no teatro de operações.

Em simultâneo, Kyiv também enfrenta baixas desconhecidas mas seguramente elevadas, a fadiga de guerra e dos seus próprios aliados ocidentais, sobretudo desde a eclosão das hostilidades, em 7 de outubro, entre Israel e o movimento islamita palestiniano Hamas.

Conflito Israel-Hamas desvia atenções

Zelensky já admitiu que o conflito no Médio Oriente desviou as atenções da Ucrânia e levou a uma desaceleração nas entregas de munições à Kyiv, enquanto tenta demonstrar aos parceiros que os sucessos contra a Rússia na Crimeia, através de bombardeamentos precisos contra a frota russa e sistemas de lançamento de mísseis, e ações anfíbias na península anexada, enfraquecerão a influência de Moscovo no Mar Negro e que não possa “estender a sua agressão a outras partes do mundo, como fez na Síria”.

Na semana passada, o chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, disse que Bruxelas espera reunir mais de 500 mil projéteis de artilharia para a Ucrânia, entre munições dos próprios arsenais e aquisições de Estados-membros, mas assumiu que poderá não cumprir o objetivo de atingir um milhão até à primavera.

Em Washington, o Pentágono alertou este mês que está em risco o pedido do Governo norte-americano ao Congresso para aprovação de uma dotação de 56,5 mil milhões de euros e que se encontra retido pela maioria republicana, que, no entanto, já desbloqueou quase 14 mil milhões para Telavive.

O esforço de manter aceso o apoio à Ucrânia tem sido notório entre os aliados, incluindo os próprios Estados Unidos, seu principal parceiro e cujo secretário da Defesa, Lloyd Austin, prometeu na segunda-feira “ajuda duradoura e inabalável”, numa visita surpresa à capital ucraniana, onde o homólogo alemão, Boris Pistorius, deixou no dia seguinte a promessa de um pacote de ajuda militar de 1,3 mil milhões de euros.

Sem fim à vista 

O Instituto para o Estudo da Guerra (ISW, na sigla em inglês), com sede em Washington, alertou que agora não é o momento para o Ocidente reduzir a sua ajuda à Ucrânia, porque causaria um atraso na chegada de armas à frente e prejudicaria a estratégia ucraniana, como aconteceu no passado quando a resistência ocidental ao envio de armamento moderno atrasou a contraofensiva de Kyiv, dando tempo aos russos para se prepararem.

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Vladimir Putin conversa com o ministro da Defesa Sergei Shoigu, durante uma visita ao quartel-general da Rússia em Rostov-on-Don | © Reuters

No mesmo sentido, o secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, advertiu que, apesar de “a situação no campo de batalha ser mais difícil do que o esperado”, uma derrota de Kyiv seria “uma tragédia para os ucranianos” e também perigosa para a Aliança Atlântica.

O próximo ano começa como este terminou, com a guerra perdida no seu labirinto, e carregada de enigmas sobre a diferença que podem fazer entregas de mísseis de longo alcance como os norte-americanos ATACMS ou os alemães Taurus, e ainda dos caças F-16, mas que não podem ser usados em território russo.

Volodymyr Zelensky afirmou no dia 9 de novembro ter um plano de combate para recuperar “cidades muito específicas” e “direções para avançar”, ao mesmo tempo que Kyiv e Moscovo reforçam os seus orçamentos em defesa para 2024 e se mantêm em posições irredutíveis que abram portas a negociações.

“Aqueles que afirmam que a Ucrânia deveria agora iniciar diálogos com a Rússia, estão desinformados ou confusos, ou estão do lado da Rússia e querem que Putin faça uma pausa antes de uma agressão ainda maior”, declarou, respaldado por sondagens no seu país, o chefe da diplomacia ucraniana, Dmytro Kuleba, observando que, anteriormente, “nem uma das 200 rondas de negociações nem 20 acordos de cessar-fogo” impediram a invasão russa.

Afastada a realização de presidenciais na Ucrânia em 2024, o mesmo não deverá acontecer porém na Rússia, esperando-se uma recandidatura de Vladimir Putin e trunfos na frente ucraniana para exibir, aguardando por outras eleições, nos Estados Unidos dentro de um ano, e que nesta e noutras geografias a erosão do conflito e o tempo joguem a seu favor.