Wrestling em Portugal: a arte de entreter

No nosso país há centenas de praticantes deste desporto também conhecido por luta livre americana.

Na grande reportagem desta semana vamos conhecer uma escola de wrestling, em Lisboa, com vários lutadores portugueses que sobem ao ringue para garantir entretenimento e golpes vistosos aos apreciadores da modalidade.

O wrestling é um espetáculo com uma imensa legião de fãs em todo o mundo. Entre acrobacias arriscadas, saltos vistosos e técnicas impressionantes de várias lutas, este desporto proporciona momentos de intenso entretenimento num mercado que vale muitos milhares de milhões de euros.

Nos Estados Unidos da América, nomes como John Cena ou Dwayne Johnson – conhecido também pelo seu nome de ringue, The Rock – ficaram internacionalmente famosos pelos combates na WWE, a World Wrestling Entertainment, e o posterior salto para os filmes de Hollywood.

E foi precisamente a ver algumas destas estrelas internacionais de luta livre americana que os wrestlers portugueses se interessaram pela modalidade e começaram a organizar-se para aprender as técnicas que viam os ídolos fazer na TV.

Um dos lutadores mais conhecidos em Portugal é Red Eagle e o início dele na modalidade foi igual ao de tantos outros, com os olhos postos nas emissões da WWE, a maior companhia mundial de wrestling.

O início

“Eu comecei a ver wrestling quando tinha mais ou menos uns 12 anos, na SIC Radical. Normalmente as pessoas pedem um trampolim, uma piscina. Eu chateava o meu pai para me fazer um ringue… Estive à espera um ano e meio até ser construído. Como já era fã de wrestling, pensei: ‘Como é que eu posso fazer para começar a praticar isto?’. E na altura comecei a perceber: ‘Ok, eu agora tenho o ringue, mas não tenho o conhecimento.’ Tive de procurar escolas em Portugal. Na altura havia grupos, mas eram grupos muito pequenos.
Estive nesses grupos todos alguns anos e depois decidi, com aquilo que aprendi aqui, criar o meu grupo”, diz o wrestler Red Eagle.

The Student Abreu é um dos alunos de Red Eagle no Centro de Treinos do Wrestling. O CTW é uma escola que funciona na freguesia da Ajuda, em Lisboa, e ensina os truques da luta livre americana. Também ele interessou-se pela modalidade com os olhos postos no ecrã.
The Student Abreu é de Guimarães e veio para Lisboa estudar em 2019. Licenciou-se em economia e atualmente trabalha como contabilista. Mas o seu sonho é poder viver exclusivamente do wrestling.

“Lembro-me que tinha mais ou menos seis ou sete anos e não tinha consola em casa. Costumava ir para a casa da minha tia e o meu primo já era um fã de wrestling. Então, quando ia lá comecei a jogar com ele um jogo de wrestling. Mais tarde, vim estudar economia para Lisboa e já que sabia que ia ficar aqui bastante tempo, porque eu sou de Guimarães. Então, a maior parte dos fins de semana ia ter de ficar aqui porque não me convinha ir a casa todas as semanas. Como já gostava de wrestling, decidi arranjar aqui um segundo passatempo e inscrevi-me no CTW. Eventualmente, isso que até era para começar como um passatempo, o ‘bichinho’ começou a crescer e tornou-se cada vez maior”, conta.

Em Portugal, o wrestling está longe de ser uma máquina bem oleada. É antes uma modalidade de nicho, que terá centenas de praticantes espalhados pelo país. De norte a sul, os aspirantes a wrestlers aprendem as melhores técnicas para saltar e cair com grande espetáculo em pequenas escolas, clubes e grupos de luta livre americana.

Combates predeterminados?

Red Eagle acrescenta: “Relativamente a treinos, temos uma escola onde treinamos três vezes por semana, temos treinos privados.
Dou treinos desde 2013, mas a promover shows, já vamos fazer 10 anos de produção de shows. São quase 100 shows produzidos em Portugal. Tudo começou quando tive uma proposta para ir à Inglaterra, onde já vou há mais de 13 anos. Tive a oportunidade de treinar com lutadores mexicanos, japoneses, ingleses e trazer esse conhecimento para cá, e então depois aí criar o CTW”.

O CTW tem desde há pouquíssimo tempo uma nova casa no pavilhão multiusos da Ajuda, um espaço cedido pela junta de freguesia.

“Posso falar um bocadinho mais do meu grupo, porque é onde eu estou mais inserido. Nós temos uma visão um bocadinho mais empresarial de construir o espetáculo de wrestling. Contamos também com muitas parcerias, seja no Japão, Inglaterra, França, Espanha. Temos este circuito de parcerias, onde as pessoas lutam aqui em Portugal, como acontece muitas vezes, e nós também vamos lá fora. Fomos a Inglaterra, Japão, Inglaterra, entre outros países.”

The Student Abreu acrescenta: “Eu concordo com o meu treinador, o Red Eagle, que sempre teve esta filosofia de tornar o wrestling um negócio e fazer disso vida, muito pelos sacrifícios que nós fazemos… o tempo que passo longe da minha família, os treinos, a dieta, tudo isso. Portanto, não podia ser um hobby e eu tinha de, de facto, conseguir ter algum rendimento disto. Então, nesse sentido, aquilo que começou por ser algo que era para passar o fim de semana transformou-se numa coisa mais séria, mais profissional e nunca mais parei de treinar desde então.”

“Sou wrestler, atleta, promotor e treinador. É difícil, mas nós temos muito gosto pelo wrestling, que é um trabalho de comunidade e nós trabalhamos todos para que quando fazemos um evento seja o maior sucesso possível. E isto é uma das coisas que acho que as pessoas às vezes não percebem sobre aquilo que nós fazemos. A minha avó sabia que os resultados do wrestling, sabia que… eu não gosto de usar a palavra ‘falso’, mas era predeterminado. A minha avó já sabia disso, o meu avô… o pessoal antigo já sabia. As pessoas unem-se para ver wrestling e divertem-se, e as culturas são misturadas… Vêm lutadores do Japão, Estados Unidos, Inglaterra…”, refere Red Eagle.

Quedas no ringue

The Student Abreu fala da primeira vez que sentiu que o piso do ringue era tudo menos suave: “Lembro-me perfeitamente quando dei a primeira queda. Sabia que o ringue era duro, mas ainda consegue ser pior do que aquilo que eu achava. Na primeira noite após esse treino lembro-me que não dormi nada. Dores de pescoço, de costas… O meu corpo não estava habituado.”

“Acho que é um dos únicos espetáculos em que o principal interveniente são as pessoas que estão a ver. Nós fazemos wrestling para tirar reações das pessoas. E um espetáculo em que se conta uma história com o nosso corpo. Acho que é a melhor maneira de descrever”, explica Red Eagle.

E continua: “Basicamente treino no ginásio e há toda uma preparação física durante a semana. Além disso, três vezes por semana treino wrestling e às vezes outras modalidades como kickboxing, amateur wrestling.”

The Student Abreu dedica-se de corpo e alma ao desporto: “Não altero a minha rotina antes dos combates. Treino como se tivesse combates todas as semanas, portanto eu faço treino no ginásio de corpo inteiro segundas, quartas e sextas. Faço isso de manhã e à tarde costumo integrar outras artes marciais que acabam por complementar aquilo que que eu faço no wrestling, como por exemplo catch wrestling, ou luta greco-romana, kickboxing, muay thai. Ao fim de semana, tenho de facto o treino de wrestling, três horas ao sábado, três horas no domingo.”

Bacalhau punch

No wrestling é comum os lutadores adotarem alcunhas e usarem máscaras e fatos que tenham a ver com o imaginário da sua persona de ringue. No caso de Red Eagle, a sua identidade de palco tem a ver com a águia, símbolo do Benfica.

“Esta [máscara] foi feita no Japão. As minhas primeiras máscaras nós fizemos os designs e enviámos para serem feitas no México. Tentámos aqui em Portugal, fomos a pessoas que fazem a roupa para os marchantes das marchas de Lisboa, mas sempre disseram que não conseguiam fazer este tipo de trabalhos”, conta o fundador do CTW.

“O wrestling, como nós já sabemos, acaba por ser um desporto de entretenimento que é predeterminado. Obviamente, aquilo que acontece dentro do ringue – e até por isso é que eu acho que o wrestling, até ao dia de hoje acaba por ainda ser subvalorizado enquanto arte – acaba por ser orgânico, porque nós estamos a contar uma história. E nós contamos essa história, portanto, a contar com a reação que o público nos está a dar”, explica Red Eagle

“Nós temos esta parceria com uma companhia em Kawasaki, chamada Ita Pro Wrestling. E o fundador da companhia é um lutador que é o Tamura, que já lutou várias vezes aqui em Portugal. E ele um dia fez um vídeo promocional a dizer que ia estar em Portugal, e disse que ia estar na nossa escola e que aquilo não era uma escola de wrestling, era um ‘bacalhau-group‘, porque nós aqui gostamos muito bacalhau. Os fãs de wrestling e do CTW trouxeram-lhe um bacalhau [risos]… As próprias pessoas começaram a trazer o bacalhau, a dar-lhe o bacalhau, e assim nasceu a história do bacalhau. [risos] É fantástico ver um japonês do outro lado do mundo vir aqui e ser conhecido por ‘bacalhau’. Ele usa o bacalhau no combate e tem algumas técnicas como o ‘bacalhau punch‘ e coisas assim”, continua, divertido, Red Eagle.

Alargar a arte a mais pessoas

The Student Abreu: “Falando do nosso projeto, acho que cada vez estamos a conseguir atrair mais alunos, o que é sempre bom porque este wrestling não deixa de ser algo que tem de ser passado de geração em geração tem de ser sustentável. Portanto, temos de ter sempre um inflow de alunos, que é para depois criar mais e mais lutadores, que eventualmente nos possam criar mais contactos em outras parcerias, no estrangeiro, etc.”

Tiago Carvalho é designer, um apaixonado por wrestling. Quando descobriu o CTW rapidamente se inscreveu nas aulas para aprender o desporto, que o ajuda a contrariar alguns dos efeitos do transtorno do espetro do autismo.

“Os treinos ajudam-me na parte da confiança, em parte a sentir-me melhor comigo mesmo. Não sou exatamente uma pessoa que é muito atlética, mas sou uma pessoa que é bastante dedicada. O wrestling é como se fosse uma combinação entre dança e teatro, é como se fosse uma combinação entre os dois. Há uma combinação entre o atleta e o adversário, ou seja, é um movimento atrás do outro, é como se fosse uma valsa um pouco ‘masoquista’. Eles [o CTW] estão a ajudar-me a mim, na minha parte física, na minha saúde mental. É como se fosse uma terapia, basicamente.”

Ricardo Leandro é streamer e também aluno do CTW. No seu canal começou por comentar videojogos e atualmente reage a combates de wrestling. A morar nas calas da Rainha, todas as semanas apanha um autocarro para Lisboa para ir aos treinos no CTW.

“Este interesse por wrestling já é antigo, já vem desde criança, devia de ter uns 12 anos… Isto é o meu sonho de infância, sempre quis fazer isto. Só que até há relativamente pouco tempo não sabia que existia cá em Portugal. O wrestling é tudo ao mesmo tempo, na verdade. É desporto, música, comédia, entretenimento, atleticismo… Quero mesmo tornar-me um lutador. Sei que vai ser difícil, eu treino há muito pouco tempo, mas quero chegar lá.”

Ossos do ofício

The Student Abreu: “Fiz a minha primeira turné no Japão, o ano passado, cinco semanas. Já estive no Reino Unido – acho que esta é a minha oitava vez. Estive na Irlanda do Norte também duas vezes e em Espanha duas vezes.

Red Eagle: “Já fiz a minha quinta turné no Japão. Dubai, Inglaterra vai fazer agora treze anos. Espanha… um bocadinho de Espanha. França, Holanda, bastantes a Welsh, que também fica ali a parte da Inglaterra, também vamos algumas vezes.

O wrestling, muitas vezes apelidado de luta livre americana, é um desporto que mistura atleticismo, técnicas de várias modalidades de luta e muito entretenimento. O foco dos espetáculos é a diversão do público e durante um combate quase tudo pode acontecer.

Red Eagle: “Eu faço um movimento – que foi o Último Dragón que me ensinou – e basicamente é um mortal para fora do ringue. Tinha mandado o meu adversário lá para baixo e pensava que ele estava ali meio zonzo e que eu tinha uma vantagem. Então, fiz o mortal para cima dele, para lhe acertar e capitalizar o combate, mas ele foi mais esperto do que eu, desviou-se e eu caí no chão e parti o braço. E isto é duro, tenho aqui uma grande cicatriz… e mais de 12 parafusos e uma placa.”

O sonho do contrato

The Student Abreu: “Não é só a condição física que conta, como também o treino de todos os movimentos e as próprias quedas. O ringue não deixa de ser ferro e madeira, cada vez que uma pessoa cai tem o seu impacto na saúde do corpo. O pescoço é sempre a parte prioritária, porque nós cada vez que damos uma queda temos os chamados ‘mini whiplashes‘, que é o que acontece, por exemplo, quando há acidentes de carro, temos aquele whiplash no pescoço – e nós sempre que damos uma queda temos ‘mini whiplashes‘. Por isso é que o treino de pescoço é bastante importante, precisamente para evitar aquilo que nós chamamos concussions, que acontece muitas vezes no boxe, MMA, qualquer desporto de combate. Fora o pescoço temos costas e low back, mais uma vez por causa das quedas. Outra mazela comum que todos nós temos é principalmente ao nível dos joelhos.”

Red Eagle: “Eu acho que todo atleta que pratica isto a nível profissional quer um contrato. E esse é sempre o meu sonho enquanto wrestler, ter um contrato. Mas o meu segundo sonho é construir isto aqui em Portugal, dar condições às pessoas de poderem fazer disto um trabalho e também ajudar outras pessoas com o mesmo sonho que eu a poder fazerem isto – porque não é impossível! Lembro-me que quando eu dizia às pessoas que queria fazer wrestling respondiam-me: ‘Eh pá, mas isso é uma cena de americanos! Tu não tens aquele tamanho que eles têm!’ Claramente, é difícil encontrar um português com o tamanho que os americanos têm, mas é possível com trabalho ser wrestler.”

Do quintal para o mundo

Embora seja uma modalidade com pouca expressão em Portugal, os praticantes e fãs têm entusiasmo suficiente para que o wrestling ganhe mais força no nosso país.

Red Eagle: “O wrestling não é diferente de nenhum outro espetáculo, como o teatro, o circo, todas essas coisas que englobam a espetáculos. E nós aqui realmente tentamos, com o pouco que nós temos, dar o melhor às pessoas que estão a ver.”

The Student Abreu: “Nunca fui um lutador que tivesse o objetivo de ir para a WWE… De ter um objetivo fixo, haver uma empresa fixa em que eu gostasse de acabar daqui a 10 anos ou 15 anos. O meu objetivo sempre foi conseguir fazer a vida disto e conseguir ganhar um ordenado com o wrestling e não ter de ter mais nenhum part time sem ser isto. Porque eu amo isto, e se puder conseguir tirar um ordenado, isso para mim já ficava feliz e realizado.”

Red Eagle: “Eu comecei isto no meu quintal e já viajei um pouco por todo o mundo a fazer isto. Espero continuar a poder fazer wrestling, mas sem dúvida nenhuma a ensinar e a evoluir o CTW.”

Do quintal da casa dos seus pais para o mundo, Red Eagle gostaria de ver o wrestling cada vez mais popular. Tal como ele, também de The Student Abreu quer mostrar a sua arte ao mundo e conquistar o respeito de todos. Para eles, sempre que sobem ao ringue, não há nervos nem medo. Lá em cima só existe vontade de entreter e emocionar o público, com uma arte que exige uma dose gigante de atleticismo.

Fala Portugal – segunda a sexta, 19:15 (hora Lisboa/Londres)