E, por mais incrível que possa parecer, as fundações desta utilização geométrica e criativa da pedra remontam aos tempos da chegada de um improvável rinoceronte a Lisboa.

Foi em ambiente de grande festa que a população da capital portuguesa assistiu, junto à Torre de Belém, ao desembarque de Ganda, um enorme rinoceronte indiano. A viagem demorou 120 dias e teve três paragens: Madagáscar, ilha de Santa Helena e Açores. O exótico animal havia sido oferecido pelo sultão de Cambaia, Modofar II, a Afonso de Albuquerque, vice-rei da Índia, numa operação diplomática motivada pelo interesse português em edificar uma fortaleza na ilha de Diu, banhada pelo Mar Arábico, na costa oriental da Índia.  

Corria o ano de 1515 e o exótico animal foi a retribuição do monarca às ofertas lusitanas – peças em prata, uma adaga decorada com rubis e outros valiosos objetos. Apesar dos presentes e da resposta negativa aos interesses portugueses, a chegada de Ganda – palavra proveniente do sânscrito, adaptada na época para dar nome ao gigante mamífero – fez furor entre a população e foi notícia em toda a Europa.

Arte lusitana

Para celebrar o seu aniversário e demonstrar a vitalidade do Império, o rei D. Manuel organizou um desfile em que uma das grandes atrações foi o imponente rinoceronte. Mas, para que o pó e a lama não estragassem a festa, manchando a grandiosidade do evento, ‘O Venturoso’ mandou calcetar o palco – a rua – de tão faustoso acontecimento, que celebrava também o êxito das explorações nacionais no Oriente. 

Embora o calcetamento de ruas na capital portuguesa tenha começado no século XVI, a calçada portuguesa, tal como a conhecemos hoje, data de meados do século XIX.

Foi aplicada pela primeira vez na parada do quartel do Batalhão de Caçadores n.º 5, no Castelo de São Jorge, em 1842. O trabalho foi executado por prisioneiros que, agrilhoados, davam forma ao padrão ziguezagueado saído da cabeça de Eusébio Furtado, oficial do exército, considerado o ‘pai’ da calçada portuguesa. O local tornou-se num ponto de visita obrigatório para muitos lisboetas e, com o tempo, a arte lusitana chegou a outros pontos da cidade.

Tapetes de pedra

Dada a criatividade empregue na alternância de cubos de calcário branco e negro, o impacto visual da calçada portuguesa é hoje uma ‘imagem de marca’ nos passeios, praças e ruas do país. E não só.

Apesar de a calçada portuguesa ser uma arte admirada mundialmente, tem sido complicado encontrar candidatos a calceteiros, pois é uma atividade bastante exigente do ponto de vista físico.

Além-fronteiras, o calçadão da praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, inaugurado no início da década de 1970, é um dos ex-líbris da cidade brasileira e uma das aplicações mais conhecidas desta arte portuguesa. Antes, em 1905, o autarca da ‘cidade maravilhosa’, Pereira Passos, viabilizou a execução da calçada da Avenida Central (atual Rio Branco), também no Rio de Janeiro, tendo para o efeito contratado mais de 170 trabalhadores portugueses.

Atualmente, em Portugal, apesar de muito admirada pelos turistas, em alguns passeios a calçada portuguesa foi substituída por outros materiais menos escorregadios. Por causa do desgaste, provocado pelo uso, o alisamento da superfície torna-se perigoso com a água das chuvas e o calor do sol.

Outras desvantagens deste piso têm a ver com a necessidade de exigir uma manutenção mais frequente e com o facto de ser uma solução mais cara – ainda que incomparavelmente mais bela – do que outras opções. Entre as vantagens, esta forma bem portuguesa de embelezar o chão possui uma excelente capacidade de drenagem – evitando a criação de poças – e tem uma elasticidade que um piso mais rígido não permite – útil, por exemplo, no caso da pressão provocada por raízes de árvores.

Apesar de ser uma arte admirada mundialmente, tem sido complicado encontrar candidatos a calceteiros, pois é uma atividade bastante exigente do ponto de vista físico. Também por isso, e por não ser uma profissão muito aliciante financeiramente, a Escola de Calceteiros de Lisboa, fundada em 1986, debate-se com a dificuldade de conseguir novos profissionais, dispostos a passarem dias inteiros de cócoras, a dar forma a estes vistosos ‘tapetes de pedra’.

 

FONTERecord TV