Nuno Lobo Antunes dispensa apresentações. Médico neurologista infantil, escritor e diretor clínico do centro clínico Partners in Neuroscience (PIN), ao longo de décadas tem tratado crianças e jovens com perturbações de desenvolvimento e comportamento. O neuropediatra, que diz não ter relutância em diagnosticar perturbação do espectro do autismo em crianças pequenas, considera fundamental um diagnóstico precoce.

Como podemos definir o autismo e quais os seus diferentes graus?
O autismo é uma perturbação do desenvolvimento que tem como traços fundamentais uma dificuldade na comunicação e na socialização e uma restrição de interesse ou uma dificuldade em abandonar rotinas ou interesses específicos. É uma visão geral do que são traços fundamentais, mas a esses juntam-se muitas vezes outros, nomeadamente dificuldades sensoriais, com exacerbação dos órgãos dos sentidos, como sensibilidade ao ruído, ou dificuldade em tocar em certas texturas, muita seletividade alimentar, alimentos que não se gosta, sensibilidade à luz, ou, muitas vezes, exatamente o contrário, muita resistência à dor, não terem frio, dificuldades de ordem sensorial. Depois também se verificam, muitas vezes, dificuldades motoras, na motricidade fina – na escrita, por exemplo – ou na dificuldade motora grosseira – correr desengonçado, dificuldade em jogar à bola, por exemplo. De notar que estas dificuldades, do ponto de vista da interação social, que têm de estar sempre presentes nem sempre são de isolamento social – às vezes até são de excessiva proximidade. Aquilo que há é um desajuste entre a proximidade ou a confiança que se tem com o outro e a proximidade física ou uma indiferenciação no tratamento – por exemplo, tratar pessoas que se conhece mal por ‘tu’, independentemente da idade ou do seu estatuto social. Como se pode imaginar, e como em todas as doenças, há graus conforme a intensidade e o impacto destes traços e características, que nós classificamos de acordo com um manual de instruções mais usado no mundo, o chamado DSM, em três níveis: ligeiro, moderado e grave ou severo – conforme a quantidade de apoios e suportes que estas crianças necessitam. De notar que a forma mais ligeira, a perturbação do espectro do autismo de nível 1, é muitas vezes conhecida como síndrome de Asperger.

Ser claro quanto ao diagnostico e algo que devemos aos pais_
Nuno Lobo Antunes é neuropediatra e ao longo de dezenas de anos de prática clínica tem acompanhado muitos jovens com perturbações de desenvolvimento e comportamento | © D.R.

Se estivesse a explicar o autismo a uma criança, como o faria?
Depende muito da idade. É completamente diferente explicar a um adolescente, em que posso usar comparações que são exaltantes, seja a Greta Thunberg, a ativista sueca, ou o Elon Musk, que se revelou como tendo síndrome de Asperger. Nesses casos há também muitos livros e material que explicam estas dificuldades de interação e estas particularidades, esta forma especial de ser, de uma maneira que não é pesada, ou que crie um ar de doença, de perturbação, mas, pelo contrário, exalta muitas qualidades que estas crianças têm. Muitas têm uma memória visual excecional ou interesses inabituais, de temas dos adultos; são crianças, apesar de terem alguma ingenuidade, extremamente fiéis a princípios e aos seus amigos. Há um lado em que se pode exaltar as qualidades e diminuir o impacto dos aspetos menos agradáveis, dando a entender que há ajudas e que não estão sozinhas neste mundo. Porque muitas destas crianças, a partir de uma certa idade, sentem que são diferentes das outras, que têm interesses diferentes, mais dificuldades em fazer amigos, etc. Após o início da adolescência é mais fácil dar a entender quais são os traços e características. Em relação aos miúdos mais novos podemos dizer que temos aqui algumas dificuldades – às vezes, muitas destas crianças têm comportamentos de oposição ou desafio, desregulam-se com alguma facilidade e nós podemos dizer que o nosso intuito é ajudar a ter um melhor controlo das emoções, sem de alguma maneira marcar ou dar um cunho de doença. Dizer que são pessoas que com ajuda conseguirão ultrapassar as suas dificuldades. Do ponto de vista escolar, académico, muitas têm problemas na escrita, ou dificuldades de interpretação de texto. É importante que elas percebam que as suas dificuldades são partilhadas por muitas pessoas e há forma de ajudá-las. Esta ideia de que não estão sozinhas neste mundo e que os problemas podem ser sujeitos a intervenção – e uma intervenção eficaz – creio que são os pontos essenciais.

“Sabemos que à medida que avança a idade da mãe e do pai, o risco de perturbação do espectro do autismo vai aumentando”

Quando não é genético, quais as causas do autismo? Há estudos que defendem que o autismo está associado a alterações da flora intestinal, resultantes de maus hábitos alimentares na gravidez, tal como o elevado consumo de gordura.
Eu creio que a evidência de que se trata de uma perturbação eminentemente genética na sua origem é avassaladora, sobretudo pelos estudos de gémeos, em que nos gémeos verdadeiros a concordância, não sendo 100%, é quase. Portanto se um tem o outro tem, e nos gémeos falsos a incidência anda à volta dos 30%. Até hoje não vi nenhum estudo que fosse convincente quanto a um papel significativo de fatores ambientais. Existe um aspeto importante, a incidência é maior em rapazes do que em raparigas, portanto seria difícil de imaginar que fatores como a alimentação da mãe fizessem essa diferença entre um género e outro.

Qual é a probabilidade de uma pessoa autista ter um filho também autista?
É difícil de dizer… Eu diria entre 20 a 30%, mas estamos a falar de casos mais graves. Esta transmissão que é seguramente genética é muito penetrante. Claro que há síndromes genéticos específicos que dão probabilidades maiores, eu estou a falar de um pai e mãe com perturbação do espectro do autismo sem defeito genético evidente. Seria interessante perceber também se existe diferença entre o facto de ser a mãe portadora ou ser o pai. Sabemos que à medida que avança a idade da mãe e do pai, o risco de perturbação do espectro do autismo vai aumentando.

Quais são os primeiros sinais de alerta e com que idade surgem?
A idade de aparecimento dos sintomas é extremamente variável e depende da intensidade desses sintomas – se forem mais marcados, mais graves, mais extensos, o diagnóstico é mais precoce. Tenho algumas mães – não muitas – que suspeitaram que algo não estava bem no próprio dia em que o bebé nasceu. Pelo menor contacto visual ao dar de mamar, não haver comunicação do olhar, elas tinham outros filhos e sentiram que havia ali algo de diferente. Outros também pela irritabilidade do bebé, pela dificuldade em consolar junto ao peito e à pele, essa proximidade era desagradável, desconfortável para o bebé e isso foi imediatamente notado. A grande maioria começa a suspeitar entre o ano e os dois anos sobretudo pelo atraso de linguagem, por não responderem ao nome, por não dizerem adeus ou fazerem gracinhas… Às vezes, há um problema entre os próprios profissionais de saúde que se sentem relutantes a afirmar o diagnóstico de uma maneira clara em idades precoces. Eu não tenho essa relutância, confesso, porque acho que muitas vezes os casos são claríssimos e quanto mais cedo for feita a intervenção melhor é o prognóstico. Portanto, acho fundamental um diagnóstico precoce – e a partir do ano e meio muitas vezes isso é possível. Mas também há casos mais subtis, mais tardios em termos de idade escolar, que se revelam na interação com os pares. É muito variável e depende sobretudo da intensidade dos sinais.

Quais as maiores dificuldades no diagnóstico?
Eu não acho, na maior parte das vezes, que o diagnóstico seja muito difícil, se se fizerem as perguntas certas. Existe uma carga pesada junto à palavra autismo. Portanto, muitos técnicos têm alguma dificuldade em afirmá-lo de forma peremptória sem introduzir alguma preparação emocional, e também porque os instrumentos que existem de avaliação psicológica falam em ‘probabilidade’… Mas eu creio que compete seguramente ao médico – talvez os psicólogos tenham essa relutância -, mas os médicos não têm de utilizar esse tipo de cuidado, se a sua convicção é de que estamos na presença de espectro do autismo… Na minha opinião devem afirmá-lo com toda a clareza. Aquilo que acontece na minha prática clínica é uma quantidade muito grande de famílias que me vêm procurar porque ainda ninguém lhes disse ‘preto no branco’ o que se passa, e sentem a necessidade de uma clarificação que lhes permita ter uma orientação clara quanto ao futuro, que terapias fazer, etc. Na minha opinião – e sublinho na minha opinião – este aspeto de ser claro quanto ao diagnóstico é algo que nós devemos aos pais.

“[Em relação ao autismo] Há um mundo de apoio que é necessário dar, que consome recursos, exige competência, experiência e dedicação”

Falou na importância de diagnóstico precoce. Que tipo de intervenção deve ter, por exemplo, uma criança de dois anos?
Muitas delas já podem iniciar terapia da fala, terapia ocupacional ou psicomotricidade e, seja como for, programas de intervenção de estimulação que devem ser feitos por técnicos especializados e com experiência em perturbações do espectro do autismo.

Portanto não havendo cura, podemos falar numa gestão da condição?
Sim, eu diria que não há cura, no sentido que se fala de uma cura de um tumor ou de uma otite ou amigdalite, mas existe aquilo que é a função principal do médico que é cuidar do seu doente – ou seja, acompanhar a criança, a família e a escola, proporcionando condições excelentes de evolução, estimulando no sentido certo, compreendendo as suas particularidade, apoiando do ponto de vista emocional, treinando as suas competências sociais, analisando dificuldades académicas que possam ter e de que forma podem ser ultrapassadas… Há um mundo de apoio que é necessário dar, que consome recursos, exige competência, experiência e dedicação.

É possível passar de um nível mais severo para um mais leve? E o oposto?
Seguramente de um nível mais severo para um mais leve sim, isto é um processo dinâmico, e naturalmente o que pretendemos com as intervenções é que esse processo de melhoria suceda, através dos nossos programas de intervenção. Presumo que o contrário seja possível se se cometerem demasiados erros, sobretudo é possível agravar a vivência das crianças se a escola, família, amigos, outras crianças, se não compreenderem o que os comportamentos escondem, qual a natureza das dificuldades da criança, se a fizerem sofrer por exemplo bullying, e há muitas formas de bullying a que estas crianças são sujeitas. Eu diria que é uma das complicações mais frequentes na sua relação com o mundo.

No grau mais severo, é comum o autista ser não verbal?
As formas mais severas correspondem a formas não verbais, mais ou menos 20% dos autistas serão não verbais. Obviamente é uma situação muito dramática, impede uma vida autónoma e é sempre um drama para os pais que se veem envelhecer e se interrogam o que sucederá quando eles não mais estiverem por aqui. É o grande drama das famílias com crianças autistas de grau severo. 

“Ser claro quanto ao diagnóstico é algo que devemos aos pais”
Nuno Lobo Antunes refere que a larga maioria das crianças com autismo deve frequentar escolas tradicionais, embora nos casos mais severos a integração deva ser mista, contemplando também unidades específicas de intervenção | © D.R.

Como se gere a fase de negação dos pais? Costuma acontecer em consulta?
Se vêm à consulta é porque já suspeitam que alguma coisa não está bem. No meu caso, as pessoas em geral pensam muito bem antes de vir, demoraram muitas vezes meses, ou até anos, a tomar essa decisão. Portanto, existe já seguramente a ideia de que algo não está bem. Às vezes, existem diferenças entre o casal, a maior parte das vezes a mãe, talvez por maior convívio com a criança no geral, está mais ciente, mais consciente que alguma coisa não está bem e aí pode haver uma divergência. Muitas vezes há até um processo bastante solitário das mães que percebem que alguma coisa não está bem, mas existe uma negação à volta delas – até uma atribuição de culpas: ‘és tu que não estás tempo suficiente com ele’, ou ‘és tu que és uma ansiosa’. Muitas vezes esse é um caminho solitário e bastante angustiante. Mas essa negação, por vezes, é mais da parte da envolvência do que quem conhece a criança na intimidade. Evidentemente, nós não podemos forçar o diagnóstico a ninguém, podemos dizer oiça: ‘vem à procura da minha experiência, vem à procura do meu conhecimento e, naturalmente, quer saber o que eu penso de uma forma honesta’. Eu creio que somados todos estes pontos – e explico porquê -, este é o diagnóstico que melhor abarca todas as características. Muitas crianças com autismo são também hiperativas e têm défice de atenção, portanto muitas vezes esse diagnóstico da hiperatividade e défice de atenção cobre ou encobre um diagnóstico de perturbação do espectro do autismo, e essa é uma dificuldade. E depois se começaram por ser vistos por exemplo por terapeutas ocupacionais que se dedicam mais aos aspetos sensoriais, muitos vêm com o diagnóstico de perturbação de integração sensorial, é como se cada técnico devido à sua especialidade tivesse uma visão parcelar, visse uma fatia da piza… mas depois é preciso alguém que veja a piza toda – veja que ela é composta de várias fatias – e no seu agregado, no seu conjunto, qual o diagnóstico que melhor cabe a essa criança ou que melhor a define.

Qual a importância da integração das crianças autistas nas escolas ditas ‘normais’?
A enorme maioria das crianças deve ser integrada numa escola normal. Acho que nos autismos severos, altamente perturbadores e com uma agitação tremenda e sem linguagem, tem de haver espaço de convívio também com crianças sem disfunção, mas ficariam melhor, grande parte do tempo, numa unidade especializada. A larga maioria deve estar numa escola normal, haverá uma fração em que a integração deverá ser mista entre tempo com outras crianças sem alterações do desenvolvimento e um espaço específico de intervenção.

“Se olhar para há 10, 15, 20 anos, muito pouca gente sabia o que é a síndrome de Asperger. Hoje em dia, graças aos media as coisas mudaram”

Podemos dizer que não há dois autistas iguais?
Absolutamente! Da mesma maneira que não há duas pessoas iguais, as pessoas não são definidas pelo seu diagnóstico, mas pelo que são e o diagnóstico é parte de quem são, mas não é a história toda. Por trás do autismo está o João, o Pedro, a Rita, a Isabel, o António, o Joaquim… São pessoas e todas são individuais, diferentes, vivem em famílias diferentes, vêm de culturas diferentes, todas partilham traços e características comuns mas devem ser olhados como indivíduos e não como diagnósticos.

Existe ainda bastante desconhecimento sobre esta condição?
Existe ainda bastante, apesar de ter a certeza de que se tem feito um caminho notável nos últimos anos. Se olhar para há 10, 15, 20 anos, muito pouca gente sabia o que é a síndrome de Asperger. Hoje em dia, graças aos media as coisas mudaram. Há uma sede de conhecimento sobre o tema e hoje em dia com a expansão dos media e Internet torna tudo mais acessível. Ainda há muito por fazer, mas muito já foi feito.

As perturbações mentais continuam a ser encaradas de forma diferente como olhamos, por exemplo, para a diabetes. Existe um certo estigma.
Certo, sobretudo pela ideia de que enquanto a diabetes, a regulação do açúcar, não depende do exercício da nossa força de vontade ou da nossa mente, as doenças mentais seriam de alguma forma controladas pela vontade do próprio. Existe efetivamente um estigma associado à doença mental que persiste, mas de qualquer maneira se olharmos para a atitude da população em geral há cada vez menos discriminação e menos estigma. Os últimos anos têm feito um caminho no sentido geral da não discriminação. E também temos uma atitude diferente em relação à doença mental e para isso contribui também a revelação de figuras públicas que falam das suas dificuldades e isso normaliza, humaniza a relação da pessoa com a doença mental.

Conseguimos falar de números? Quantos autistas diagnosticados existem em Portugal?
O número tem vindo a aumentar progressivamente e de forma notória. A questão que se coloca é se resulta de um melhor diagnóstico, conhecimento ou se existe algo na água, em sentido simbólico, algo no contexto, no ambiente, responsável por este acréscimo. Se existe não foi encontrado. Se houver uma influência na idade materna e paterna, o facto de as pessoas cada vez terem filhos mais tarde tem alguma coisa a ver com isto. Em termos de diagnóstico, o aumento tem sido brutal.

FONTE© Envato