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Eu, cozinheiro

Eu cozinheiro
© Tookapic, Pexels
César Ribeiro - Share Magazine - Opinião
César Ribeiro

Professor

Não posso dizer que sou muito chegado à cozinha, mas gosto. Há dias e dias. Normalmente, a vida não me permite. É preciso contrariá-la para conseguir agarrar no tacho ou na panela. Quando lá estou, não sou muito de doces. Tendo mais para os assados que depois misturo com umas verduras. Passada uma temporada, volto lá, mais uma vez em jeito de contrariar a vida.

Hoje, para variar, vai ser um doce. A receita que vos trago tem apenas quatro ingredientes. Um deles, o primeiro, não se vende. Basta tirar um pouco de nós (não confundir com ‘noz’) e entornar para dentro da forma previamente untada com o segundo, que vem embalado em quantidades exatas.

O terceiro deriva do segundo, mas foi previamente amassado e batido por especialistas. A base é a mesma, mas vem a falar mais claro. Funciona como uma espécie de fermento. O quarto e último, só é aplicado quando o resultado sai do forno. Em bom rigor, no momento em que é servido, no pratinho, a gosto.

O primeiro ingrediente é a consciência, o segundo, a matemática, o terceiro, a estatística e o quarto, a decisão. Sim, eu sei, não leva açúcar, mas também não faz falta. Eu explico: parece que os números trazem uma aparente tranquilidade às decisões do ser humano.

Desde que existam números, não existem problemas de consciência. Na verdade, quando não sei o que fazer, começo por untar o meu dia com os números e verto para lá a consciência. Ou seja, acordo, olho para o aparelho que dormiu na mesa de cabeceira e vejo se a meteorologia indica um número de temperatura muito baixo. Sim, é baixo, então é dia de levar o gorro. Não, é elevado, que maravilha, vou levar sandálias.

Ou seja, o número é que manda se levo gorro ou sandálias. A coisa funciona tão bem que se eu chegar à rua de gorro e todos estiverem de sandálias, eu digo que todos estão loucos. Se eu chegar de sandálias e todos estiverem de galochas, todos, menos eu, continuam a estar loucos.

Não há nada na minha consciência que me acuse quanto à minha decisão, desde que tenha seguido os números. Ou seja, com os quatro ingredientes que eu usei, o meu bolo é o melhor do mundo, mesmo que ninguém coma dele.

Hoje, ou melhor, nos últimos tempos, o ‘poder’ dos números oferecidos pelas estatísticas parece mais… eu diria, bizarro. Os números conseguem meter a população em casa, confinada, de um dia para o outro. Conseguem fechar a restauração ou a hotelaria, ou permitir que laborem mais ou menos condicionadas. Conseguem, imagine-se, fechar o espaço aéreo de um país…e mais, toda esta dependência fez com que aprendêssemos a estabelecer intervalos de valores que consideramos razoáveis para uma decisão.

Tudo é matemático, exato, pesado e ponderado… até que alguém decida que os ingredientes vão ser outros.

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