A calma do dia no Bairro Alto, em Lisboa, só é interrompida pelo barulho das rodas das malas dos turistas e pelas máquinas de Carlos Guerreiro.
Aos seis anos aprendeu a arte de bem cuidar dos livros e é dos poucos que ainda resiste numa profissão que está quase a desaparecer.
Carlos Guerreiro é encardenador há mais de 50 anos. Desde 1981 que trabalha neste bairro típico de Lisboa. Há muito que já lá vai o tempo em que tinha como vizinhos outros profissionais de artes gráficas. Agora, imperam os negócios ligados ao turismo.
“Havia pelo menos seis ou sete encadernadores que fecharam e agora somos três. Tipografias havia imensas, mas atualmente no Bairro Alto não existe nenhuma. O bairro está a ficar, como todos os bairros de Lisboa, irreconhecíveis. O estrangeiro vem cá para apreciar o quê? Para verem aquilo que já têm lá? Esta zona está limitada a restaurantes – faz-me confusão como é que abrem tantos restaurantes”, desabafa Carlos Guerreiro.

Mas a culpa não é só do turismo. Os encargos com rendas, luz, impostos e materiais fazem com que se torne quase insustentável manter viva esta profissão antiga. O espaço na rua de São Boaventura já se torna pequeno para toda a arte de Carlos e as condições também não são as melhores. Já pediu ajuda à Câmara Municipal de Lisboa, onde dá formações, para conseguir uma nova oficina.
Enquanto não consegue, vai ficar pelo menos mais quatro anos neste espaço e até lá continuará a tratar os livros como se fossem ‘família’, porque quando acaba um trabalho e o entrega ao cliente sente “que perdeu um filho”.
E por isso tem pena que a profissão esteja a desaparecer e que, com o passar dos anos, não se tenha dado à atividade a devida atenção.
“As pessoas agora começaram a acordar para o facto de esta profissão estar em vias de extinção, mas eu já ando a dizê-lo há muitos anos. As pessoas não têm noção do tempo que leva a aprender, a dedicação e aptidões que são necessárias. É bom que não se invente muito, porque às vezes aparecem-me coisas de jovens que eu digo que são ideias de YouTube”, diz.
Nova geração
Apesar de serem poucos há quem continue a dar vida à encadernação. Chegou a hora de conhecermos Letícia e Tiago. Dois jovens, ela brasileira e ele português, que viram na necessidade e na paixão pelos livros uma oportunidade de negócio.
Letícia escolheu Lisboa para continuar os estudos. Depois da formação inicial em arquitetura seguiu-se na capital um mestrado em Tipografia, porque “queria trabalhar com livros. Sem nunca ter pisado solo português, decidi vir para Portugal”, conta.

Da velha oficina no bairro típico da capital passamos para um ateliê em Arroios. É aqui que encontramos Letícia de agulha e linha na mão a coser um caderno e Tiago numa prensa, com quase tantos anos como ele, a dar nome a um livro.
Letícia explica que um encadernador faz muitas coisas: “Tudo o que é relacionado a trabalho manual em papelaria, digamos assim. Desde caixas, livros, cadernos, menus… tudo o que é feito à mão com um papel, nós podemos fazer.”
No projeto que tem em conjunto com Tiago também fazem outros trabalhos. “Por vezes, há clientes que têm uma ideia e que não sabem qual é a estética… Nesses casos, nós ajudamos a dar forma aos projetos dos clientes. Em alguns participamos desde o início ao fim: desde as fotografias, as impressões, o design do livro à impressão, encadernação e estampagem.”

Uma das maiores dificuldades que encontram é a falta de materiais, muitas vezes importados de outros países, como por exemplo do Brasil.
Como querem que esta arte passe para mais pessoas ministram workshops para a partilha de conhecimento, uma vez que não existe um curso específico de encadernação.
Restauro de livros reais
Ao contrário dos projetos de Letícia e de Tiago, Carlos faz restauro de livros – e agora tem em mãos um exemplar muito antigo, que encontrou no lixo. Desde a capa às folhas – que apanharam humidade e estão com muitos buracos – tudo vai ser intervencionado pelo histórico encadernador.
Na oficina guarda recordações e exibe as obras que mais lhe enchem o coração. É com orgulho que também nos conta os trabalhos importantes que tem feito para a Assembleia da República, Presidência da República e para o Tribunal Constitucional, como “caixas para condecorações. Tenho aqui um trabalho para o rei da Grécia, e também já fiz outros para a rainha de Inglaterra”.
São recordações que todos os dias colocam um sorriso no rosto de Carlos e que fazem com que continue a trabalhar com a mesma dedicação de quando começou, com apenas seis anos.
Enche-lhe o coração saber que ainda existem profissionais mais novos, como Letícia e Tiago, que continuam a manter viva esta profissão. E, por mais que o mundo fique tecnológico, serão sempre necessárias pessoas que continuem a coser estas páginas da História.