Passam as madrugadas em claro a patrulhar as ruas e a guardar casas, carros e pessoas, enquanto o mundo está a dormir.

Passam poucos minutos das onze e das ruas de Telheiras vem o silêncio preguiçoso de quem já recolheu ao conforto do lar. Se para uns a noite é sinónimo de descanso, há aqueles para quem a cidade nunca dorme. Domingos Filipe prepara-se para mais um turno, que começa sempre na esquadra da PSP, onde assina o livro de presença e se põe a par das ocorrências. Já são quase três décadas a percorrer as ruas, noite após noite.

“Em novembro de 1990 iniciei a atividade na esquadra de Telheiras, vai fazer 28 anos. O guarda-noturno, para além da noite, também tem serviço durante o dia, temos de contactar comerciantes e residentes para fazer angariações. De noite saio às 6 da manhã, descanso e à tarde venho para a área fazer cobrança e angariar novos subscritores”, explica.

O que me motiva é as pessoas que dão valor e sabem o quão importante é o nosso serviço

É a cobrança, porta a porta, que determina o salário que recebe ao fim do mês. São os subscritores, particulares ou empresas, que lhe pagam, mas o guarda-noturno acaba por estar ao serviço de todos os moradores: “Patrulhamos a área toda a noite, a baixas velocidades, temos de vigiar as viaturas dos nossos subscritores, mas acabamos por vigiar todos os outros carros, toda a população usufrui do serviço”.

Uma das tarefas de Domingos Filipe é acompanhar a casa uma jovem, sempre que fica até tarde a estudar na faculdade e não encontra estacionamento perto do prédio onde mora. “As pessoas dão valor a este serviço, sabem que todas as noites têm um serviço de proximidade. O nosso subscritor contacta connosco várias vezes, criam-se laços de amizade e as pessoas mantêm-se durante muito tempo.”

Quase trinta anos nas ruas já lhe valeram alguns dissabores, mas são os imprevistos da profissão que lhe fazem a adrenalina correr nas veias.

Domingos Filipe - Guardiões da noite
Domingos Filipe | © Record TV Europa

“Numa situação em que ia a patrulhar, vi dois indivíduos a fazer um furto dentro de uma viatura. Assim que me aproximei, um deles espetou-me a faca no braço. Mas depois consegui agarrar o indivíduo, fui para o hospital e ele foi detido. Não tenho medo, eu gosto desta profissão, faço com muito gosto, todos os dias tenho vontade de vir trabalhar, como no início da profissão”, conta. Domingos Filipe mostra-se bastante motivado com a profissão: “O que me motiva é as pessoas que dão valor e sabem o quão importante é o nosso serviço”.

Não existem fins de semana ou feriados para os guardas-noturnos. Folgam um dia de cinco em cinco, e dois dias uma vez por mês, o que dificulta as relações familiares. “Não é fácil porque, quando estou a chegar de manhã, eles estão a sair para a escola e para o trabalho. Mas isto são muitos anos e acabamos depois por compensar noutras oportunidades.”

Isa Silvestre - Guardiões da noite
Isa Silvestre | © Record TV Europa

A psicóloga Isa Silvestre refere que pessoas que trabalham durante o período noturno tendem a sofrer mais de fadiga, cansaço físico, sonolência, alterações de humor, ansiedade, irritabilidade e menor capacidade de atenção e concentração.

“Há uma adaptação ao estilo de vida, que passa por ter de conviver fora de horas com as pessoas familiarmente e em termos sociais. O mais comum é a pessoa trabalhar durante o dia e conviver ao fim da tarde/noite e, por vezes, existe dificuldade em conciliar”, aponta.

Fugiu à morte por um triz

“Apesar de trabalharmos de noite e dormirmos de dia não quer dizer que as horas que dormirmos sejam suficientes para o descanso. É natural que procuremos mais horas de descanso, o que implica que não haja aquela convivência normal com a família. Chego a casa por volta das 6:30, durmo até as 11:00. Durante o dia tenho outros afazeres, ao fim do dia, durante cerca de duas ou três horas faço as cobranças, depois há o jantar e por vezes consigo descansar depois de jantar uma hora ou duas.”

António Marques - Guardiões da noite
António Marques | © Record TV Europa

Esta é a rotina de António Marques, que conta já 23 anos nas ruas da Parede, em Cascais. Dos primeiros tempos guarda episódios difíceis de esquecer.

“Uma noite, logo no princípio da carreira, foi detido um indivíduo ligado ao tráfico de droga e aquilo que ele relatava de miúdas novas, o que faziam no bairro para obter uma dose de droga… Nessa noite quando cheguei a casa não consegui descansar. Não estava habituado a ouvir aquilo”, desabafa.

Não temos apoios, não temos um ordenado, não temos nada, tem sido solicitada a abertura de mais concursos

A noite está fria e pelas ruas não há vivalma. O turno começa com a habitual ronda por um colégio. Pátios desertos, corredores silenciosos, salas vazias. Os espaços onde durante o dia ecoam vozes e risos de crianças estão agora mergulhados na sombra.

Nos últimos anos, os furtos têm sido menos constantes, mas António Marques considera que os guardas-noturnos não têm qualquer apoio, sobretudo desde 2009, quando a lei mudou e perderam o direito de levantar a arma na esquadra.

“A partir de determinada altura, sobretudo a partir da aplicação da nova lei das armas, esqueceram-se de nós, retiraram-nos esse apoio. Não é que andássemos aí aos tiros, até porque não há registo de acidentes com guardas-noturnos, era simplesmente uma maneira de impor mais respeito e sentirmo-nos mais protegidos”, defende.

A falta de apoios é uma das queixas mais recorrentes destes profissionais. “Não temos apoios, um ordenado, não temos nada, tem sido solicitada a abertura de mais concursos”, acrescenta.

Carlos Tendeiro - Guardiões da noite
Carlos Tendeiro | © Record TV Europa

Mas na rotina de um guarda-noturno há também espaço para momentos caricatos. Carlos Tendeiro, presidente da Associação Socioprofissional dos Guardas Noturnos, patrulha as ruas de Lagos e conta que no Algarve se apanham as situações mais insólitas.

“O Algarve atrai todo o tipo de turistas. Às vezes vê-se um movimento mais suspeito e é um casal a ter relações sexuais na via pública. Já tive a situação de um indivíduo, que eu pensava que estava a furtar a roda de um veículo, e estava a fazer as suas necessidades… Há sempre situações caricatas, porque ao fim e ao cabo o nosso trabalho é esse, ver algum movimento estranho e o que sai fora do normal.”

Há 300 guardas-noturnos e, se vivemos por conta da população, é porque ela nos quer

Situações caricatas, mas também momentos tensos. Em 2005, Tendeiro viveu um episódio que o marcou para a vida. “Estava numa barreira policial, junto com a PSP, e dispararam contra mim e contra o chefe da PSP. Eu tive a felicidade de me baixar e mataram o chefe, que estava ao meu lado. Foi a situação mais marcante que tive e que até hoje me acompanha e serve de exemplo para a minha profissão e tirar daí ensinamentos”, recorda.

Carlos Tendeiro seguiu as pisadas do pai, que exerce a atividade há quase quarenta anos. Existem cerca de 300 guardas-noturnos no país. O acesso à profissão encontra-se vedado pela falta de abertura de concursos e pela obrigatoriedade de uma formação.

“Tem de se ser possuidor de uma formação, que não está regulamentada ainda por portaria, logo não há quem a tenha. Não vemos como seja exequível, porque tirar uma formação, pagar os custos, se calhar em Lisboa, todas as pessoas do país vão ter de se deslocar a Lisboa para a fazer, é especulação, mas é o que se avizinha… Sem o mínimo de garantias de empregabilidade, porque fica a cargo das câmaras municipais abrirem concursos para licenciamento e as câmaras negam-se simplesmente”, lamenta.

Carlos Tendeiro reconhece que os guardas-noturnos estão por sua própria conta e risco: “É que estamos mesmo, não há outra forma de ver. Trabalhamos sozinhos, andamos de viatura como forma de proteção porque a pé somos vulneráveis. Podemos valer-nos dos colegas das áreas vizinhas, a legislação já permite isso. Nós temos os meios para fazer face a algumas situações em colaboração com as forças de segurança. Podemos tentar colmatar até à chegada deles, que seria o ideal, haver uma conjugação dos esforços para um bem comum.”

“Saio de casa e não sei se volto”

Jorge Cavalheiro conhece a Venteira tão bem como a palma da mão. Zona problemática no que diz respeito à criminalidade, a Amadora já foi palco de episódios tensos.

Jorge Cavalheiro - Guardiões da noite
Jorge Cavalheiro | © Record TV Europa

Eu tenho pessoas que já me pagam há 36 anos, mas é uma zona velha, as pessoas vão morrendo

“Há uns anos houve uns indivíduos que fizeram um assalto em Almada. Detetámos a viatura aqui na Amadora e fomos atrás deles. Houve um que parou e, ao tentar abordá-los, atiraram-se com o carro para cima de mim. Ainda me bateram nas pernas e tive de disparar. Fiz um disparo para a porta, acertei num dos indivíduos, ainda estou para saber quem ele é, conseguiu fugir”, recorda.

Numa outra situação, chegou mesmo a ser alvejado por uma bala perdida. “Houve um alerta que estavam uns indivíduos a furtar combustível, conseguiram fugir com o carro e acabámos por intercetá-los em Queluz. Um dos meus colegas agarrou-se a ele para o deter e ele agarrou-se à arma do meu colega, a tentar furtar-lhe a arma. Eu fui em seu auxílio, a arma acabou por disparar no meio da luta e fui atingido, acertaram-me num pé. O que eu ganhei foram dois meses de canadianas e com o pé em gesso.”

Para Jorge Cavalheiro, não há tempo para pensar em ter medo. O gosto que sente em ajudar o próximo é o que o faz continuar a querer sair de casa, todas as noites. “Medo… Toda a gente tem medo. Costumo dizer ‘sei que saio de casa e não sei se volto’. Mas isso pode acontecer a qualquer pessoa, atravessamos uma estrada e somos atropelados… Tudo é perigoso. Está claro que nós na altura temos de ter sangue-frio e tentar resolver as situações, mas há sempre um receio”, desabafa.

Tem perto de 200 subscritores que, em média, lhe pagam 2,50 euros por mês: “Gosto de ajudar as pessoas. Isto é um trabalho em que ajudamos muito as pessoas, seja na rua, seja as pessoas que nos pagam… é um serviço de proximidade. Eu tenho pessoas que já me pagam há 36 anos, mas é uma zona velha, as pessoas vão morrendo”.

Apesar de todas as dificuldades, para estes profissionais é ponto assente que a atividade de guarda-noturno não se encontra em vias de extinção. “Se estiver em vias de extinção é porque vamos deixar que isso aconteça. Há um grande desconhecimento por parte das Câmaras da mais-valia do guarda-noturno e somos nós que temos de mudar mentalidades e dar-nos a conhecer. Não está em vias de extinção porque há pessoas interessadas em contribuir e pessoas interessadas em desenvolver a atividade. Há 300 guardas-noturnos e, se vivemos por conta da população, é porque a população nos quer”, considera Carlos Tendeiro.

Os guardiões da noite, ainda que invisíveis aos olhos de muita gente, trabalham nas sombras para manter a ordem. Noite após noite, enquanto o mundo está a dormir.

 

FONTE© Record TV Europa