Aos dois anos, Luísa ainda não dorme como qualquer mãe ou pai desejaria. Depois de uns primeiros meses calmos, as noites transformaram-se em tormentos, desde o abrupto regresso ao trabalho de Catarina Tavares, auxiliar de educação na mesma instituição de solidariedade social, onde a filha ficou inscrita, na zona de Lisboa.

“Ela acorda várias vezes durante a noite, aos gritos, inconsolável, sobretudo desde que entrou para a escola. Gostava de perceber porque é que isso acontece e como a posso ajudar, por isso resolvi integrar este estudo. Há noites em que é um desespero para mim e para o pai. Sinto-me até um pouco culpada por ter ido trabalhar a tempo inteiro, sem horário reduzido, quando ela tinha cinco meses, porque acho que isso foi o ponto de viragem.”

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Catarina Tavares e a filha, Luísa. A menina de dois anos vai participar num estudo sobre o sono, da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto | © Record TV Europa

Foram meses a tentar de tudo um pouco. “Óleos essenciais, virar o colchão da cabeça para os pés, meter uma tesoura aberta no chão… Mas não resultou. Também segui a dica de deixar chorar, não vou mentir, mas não gostei”, desabafa Catarina.

Mas, mais do que dicas da Internet, precisava de ajuda especializada. A necessidade de uma estratégia estruturada e orientada por um profissional do sono, levaram-na a candidatar-se ao inédito estudo da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, que pretende precisamente perceber o impacto das noites mal dormidas no desenvolvimento psicomotor das crianças.

“Na maior parte dos estudos que existem, mesmo a nível internacional, o sono foi medido através de inquéritos aos pais, que tem um grau de subjetividade muito significativo e apenas num único momento no tempo. Neste estudo, propomo-nos a medir o sono de uma forma muito concreta através de um equipamento, o actígrafo, e durante um período de tempo mais longo, entre os dois e os quatro anos”, explica uma das coordenadoras do estudo, Andreia Neves.

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Andreia Neves é cardiopneumologista, especializada em sono pediátrico, e uma das coordenadoras do estudo | © Record TV Europa

Várias capacidades afetadas com escassez de sono

Luísa vai assim ser uma das mais de 300 crianças saudáveis, entre os 18 meses e os dois anos, que serão voluntárias neste estudo de características únicas. O recrutamento foi feito no Porto, em Gaia e em Lisboa até ao início do presente mês de junho. As crianças serão seguidas ao longo de dois anos, período durante o qual serão feitas três avaliações: no início, a meio e no final do estudo.

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As crianças participantes neste inédito estudo vão usar um actígrafo, equipamento que permite avaliar a qualidade do sono | © Record TV Europa

Andreia Neves, coordenadora do projeto e cardiopneumologista especializada em sono pediátrico, já antecipa algumas conclusões. “As disrupções do sono, a ausência de rotinas regulares, os despertares frequentes e os horários tardios de deitar têm aparentemente um reflexo nas capacidades da criança, no seu desenvolvimento, na parte linguística, de raciocínio, mesmo na capacidade de focar numa atividade… E também esperamos encontrar uma correlação significativa entre a visualização de ecrãs (tempo e horário de ecrã) com, não só os parâmetros de sono, como com os níveis de melatonina que vamos medir na urina.”

Impacto dos ecrãs é real e preocupante

É que outro objetivo do estudo passa por analisar de forma muito objetiva a relação entre a exposição a ecrãs e os níveis de melatonina, a hormona do sono. Essa medição vai também ser feita através do actígrafo.

“A recomendação da Academia Norte-americana de pediatria é que até aos três anos a exposição a ecrãs seja zero; dos três aos seis, não exceda meia hora diária; e a partir dos seis anos, uma hora diária. É superfrequente encontrar crianças com dois anos que já fazem duas ou três horas de ecrã, diariamente! Não é incomum eu ver crianças de sete meses que já veem telemóveis, vídeos – e depois poderíamos ainda discutir o conteúdo, que é superdesadequado)…”, explica Andreia Neves.

Os estudos desaconselham que as crianças passem muito tempo à frente de ecrãs de, por exemplo, telemóveis e tablets. Esta nova investigação pretende retirar conclusões mais objetivas do real impacto destes aparelhos no sono dos mais novos | © Record TV Europa

O impacto dos ecrãs no sono é, segundo a especialista, muito nefasto: “Quando visualizamos ecrãs imediatamente antes de ir dormir, pode até parecer que adormecemos melhor, mas o nosso sono vai ser de pior qualidade. Os meninos que veem, por exemplo, YouTube tornam-se impacientes porque não acompanham sequer uma cadência, uma estória, estão sempre a avançar para outros vídeos. Além disso, afeta a linguagem, porque os bonecos não falam como nós, não mexem bem a boca.”

‘Dormir é meio sustento’ – a ciência comprova o acerto do ditado 

Ainda há alguns mistérios por desvendar no que à medicina do sono diz respeito, mas já existe uma grande certeza entre os especialistas: tudo no nosso corpo melhora quando dormimos e qualquer órgão ou sistema piora, quando se dorme pouco ou mal.

O sono é para o organismo uma espécie de manutenção e revisão de todos os sistemas: produz hormonas como a do crescimento e a prolactina, responsável pelo leite materno; elimina substâncias tóxicas que acumulámos durante o dia, autorregula a temperatura do corpo, desenvolve o cérebro ao fazer nascer e crescer neurónios, consolida memórias e aprendizagens que armazenamos durante o dia e controla o metabolismo, nomeadamente o da insulina e da glicose

Por tudo isto, horas de sono perdidas não têm compensação possível e fazem aumentar o risco de doenças, sobretudo se começa logo nas idades mais jovens. Para adequar expectativas à realidade, é preciso, no entanto, ter consciência de que os despertares durante o sono são na maioria dos casos normais pelo menos até ao primeiro ano de vida.

Cada caso deve ser analisado de forma singular e não há receitas milagrosas, mas Andreia Neves deixa alguns conselhos base aos pais: “Primeiro, tentar ser um exemplo: adultos que não gostam de dormir têm mais probabilidade de ter filhos com resistência ao sono. Depois, com as devidas saudáveis exceções, tentar ter uma rotina regular, mais ou menos a partir dos seis meses…”

Por fim, importa procurar informação fidedigna desde cedo sobre as diferentes fases do sono pelas quais passam bebés e crianças, e tentar deixar de lado soluções drásticas e aleatórias.

FONTE© Record TV Europa