Catarina Louçada vem ao portão receber-nos. Sorri com afabilidade, indica-nos onde podemos estacionar o carro, diz que podemos acariciar a cadela que nos ladra. Não morde, garante. Não estende a mão para nos cumprimentar nem se aproxima demasiado enquanto nos conduz para o interior de casa. Casa onde vivem não um nem dois, mas uma família de seis pessoas com autismo.

Conforto na estranheza

“Eu sempre fui estranha, profundamente estranha.” É assim que Catarina começa a descrever-nos os sinais que já eram de alerta, mas, que na altura, desconhecia. “Achava que essa estranheza era culpa minha, porque não percebia porque é que os outros gostavam de certas coisas, percebiam as piadas, riam-se… A minha mãe preocupava-se porque eu não tinha amigos… só lia, lia um livro por dia e era capaz de alternar entre ‘Os Cinco’ e mecânica automóvel… Lembro-me de uma amiga da minha mãe me dar um Nenuco e perguntar ‘então, é o teu bebé?’ E eu ‘não, é um boneco’…”. Com a diferença veio também o bullying, que só terminou quando, aos 16 anos, se deu “um click” e Catarina aprendeu “como é que os outros funcionavam”, conseguindo enquadrar-se. 

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Catarina e Nuno são autistas, tal como os seus quatro filhos | © Record TV Europa

Sentado a seu lado no sofá está o marido, Nuno Rodrigues, que revela sempre ter tido amigos que o apoiavam e percebiam: “Eu nunca dei parabéns a ninguém, esqueço-me, não ligo e os meus amigos até me avisavam, ‘faço anos, tens de me dar os parabéns’ e eu nunca dava. Mas eles sempre gostaram de mim e apoiaram-me imenso. A grande diferença de mim para a Catarina é que tive sorte com os amigos e com a vida que tive”.

Vida que Nuno descreve como sendo sempre muito “pacata”, resumindo-se a casa, escola e fazer desporto. Foi precisamente o gosto pelo desporto que o ajudou a ser popular na escola, tendo dificuldade em compreender o que é o bullying por nunca ter o sentido na pele. Onde o autismo mais se fazia notar era na maneira como comia e que perdura até aos dias de hoje: “Tudo muito organizado, as coisas têm de bater certo e acabar tudo ao mesmo tempo, a carne, o arroz, a água…”

“E não comes nada verde…”, interrompe Catarina. “E se tocarem na minha comida já não como”, continua. “Não gosto que invadam o meu espaço quando estou a comer.” Coisas que, garante, não se notavam, porque não sendo muito social, conseguia disfarçar.

Catarina e Nuno iam encontrando conforto na estranheza que viam em si próprios e perante um mundo que nem sempre compreendiam. A diferença só se transformou em diagnóstico depois do nascimento de Francisca.

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Francisca, 11 anos, é a segunda filha mais velha de Catarina e Nuno | © Record TV Europa

O carimbo autismo

Francisca tem 11 anos e é a segunda filha do casal. Catarina conta que, em bebé, Francisca era “intensa”, bem diferente da “ideia do ‘bebé Nestlé’”. Chorava 18 horas por dia, não dormia, não aceitava colo em qualquer posição, só queria certas comidas e não interagia com as outras crianças. Foram precisos 14 médicos para Francisca receber o diagnóstico de autismo. “Tive de fazer uma avaliação no psiquiatra e duas no psicólogo para ter o carimbo em como não tinha uma depressão pós-parto, para ser ouvida, porque para todos os efeitos era uma  mãe histérica e deprimida. Foram anos de luta e comigo a levar o rótulo de ‘louca’”, desabafa a mãe.

O neurologista infantil Nuno Lobo Antunes defende que ser claro em relação ao diagnóstico é algo “que se deve aos pais”: “Existe uma carga pesada junto à palavra autismo, portanto muitos técnicos têm alguma dificuldade em afirmá-lo de forma peremptória. Talvez os psicólogos tenham essa relutância, mas os médicos não têm de utilizar esse tipo de cuidado, se a sua convicção é de que estamos na presença de espectro do autismo, na minha opinião devem afirmá-lo com toda a clareza. Ser claro quanto ao diagnóstico é algo que nós devemos aos pais”.

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Nuno Lobo Antunes é neurologista infantil e tem uma longa experiência a acompanhar crianças e jovens com espectro de autismo | © Record TV Europa

Foi só depois do diagnóstico de Francisca que Catarina e Nuno descobriram que também eles eram autistas. “O médico olhou muitas vezes para mim e disse ‘o pai sabe que é autista, não sabe?’ Respondi: ‘Não, não sei’. E ele acrescentou: ‘Então, é melhor fazer os testes…’”. Catarina, entre risos, defende que a história teve mais empolgação. “Tu contas melhor do que eu”, encoraja o marido. “Mas qual é a vossa dúvida, o autismo vem do pai. Olhe lá para o pai? Não sabia? Não sabia como? Mas é óbvio!”, Catarina ri, enquanto recorda as palavras do médico.

Foi durante a avaliação de Francisca que tiveram conhecimento que a filha mais velha, Constança, é também autista. Para a mãe, era normal a criança saber, com apenas 15 meses de idade, em que dia da semana tinham de levar lençóis para a creche: “Ao que parece isso não é normal, mas para mim era, não tinha outro padrão… Mas a técnica olhou para a Constança  e disse ‘já viu como ela está a brincar? Devíamos avaliá-la também, mãe’…”

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Constança é a filha mais velha de Catarina e Nuno | © Record TV Europa

Constança estava a brincar na sala de espera do consultório, a empilhar brinquedos de forma rígida, enquanto expressava desagrado e incómodo com o barulho que as outras crianças à sua volta faziam. “Eu costumo dizer que ela nasceu com 40 anos. Sempre foi muito responsável, sempre teve uma maturidade gigante. Estávamos a ir para casa e ela perguntava: ‘Mãe temos leite? Temos pão?’ Eu não sabia que ela precisava desta previsibilidade, achava normal, tão querida, preocupa-se, que amoroso… não, era autismo”, conta Catarina entre gargalhadas.

Autismo que se tornou depois fácil de identificar nos filhos mais novos. Tomás tem agora nove anos e Benedita três. “O Tomás esteve uma semana sem comer porque a comida tinha legumes. Eu fiz gelatina de brócolos, gelado de espinafres, para tentar inserir o verde, e ele não comia. Ouvia-se a barriga a dar voltas com fome, ele não conseguia, chegava e bloqueava”, recorda Catarina.

“Para nós se calhar também é mais fácil porque não conhecemos outra realidade, foi sempre assim a nossa vida, para mim é normal o que eles estão a viver, as reações deles…”, sintetiza o pai. “Nós basicamente saímos da consulta com o carimbo autismo pela primeira vez e eu chorei desalmadamente, um misto de pânico e alívio. Chorei cinco minutos e depois foi espera, mas já está tudo a funcionar, ela não deixou de ser quem é, nós já sabemos dar a volta à coisa, portanto é só alivio, chegámos a casa e foi ‘filhaaa nós finalmente sabemos, tu és autista!”, revela Catarina.

“Autistices”

Estima-se que, em todo o mundo, 1% da população tenha autismo. Em Portugal, uma em cada mil crianças nasce autista, no entanto, nos últimos anos tem-se verificado um aumento significativo no número de diagnósticos. Mas, afinal, o que é isto de ser autista? Nuno Lobo Antunes explica: “O autismo é uma perturbação do desenvolvimento que tem como traços fundamentais uma dificuldade na comunicação e na socialização e uma restrição de interesse ou uma dificuldade em abandonar rotinas ou interesses específicos. A esses traços fundamentais juntam-se muitas vezes outros, nomeadamente dificuldades sensoriais, com exacerbação dos órgãos dos sentidos, como sensibilidade ao ruído, ou dificuldade em tocar em certas texturas, muita seletividade alimentar, sensibilidade à luz, ou muitas vezes exatamente o contrário, muita resistência à dor, não terem frio, ou seja, dificuldades de ordem sensorial”.

Partilham a mesma condição, mas ninguém é definido por um diagnóstico e não existem dois autistas iguais. Com perfis e necessidades diferentes, impõe-se a pergunta: como é que se gere uma família de seis autistas? Catarina não hesita e a resposta vem acompanhada da habitual gargalhada: “Dando em louca. Três vezes por dia. Vivendo 72 horas em cada 24”.

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Catarina e Nuno com os seus quatro filhos, Francisca, Constança, Tomás e Benedita, num momento de lazer familiar | © Record TV Europa

Depois explica-nos que existem vários perfis sensoriais e que a primeira necessidade é identificar, dentro dos perfis, quais são os erros que o autista comete ou as dificuldades que tem – e dar resposta a cada uma delas.

“Os autistas muitas vezes não conseguem receber a informação, identificar a informação e gerir a informação. Por exemplo, eu só posso ir à casa de banho daqui a 30 minutos porque estou no carro e ajo em conformidade. Isto [de não fazer logo o que se quer] pode parecer muito fácil, mas para um autista não é. O nosso trabalho é garantir que não há ‘fritanços’ ou ‘autistices’”, revela Catarina.

E o que é isto de ‘autistices’? A resposta é simples: “As ‘autistices’ é quando o autismo se revela. São essas coisas estranhas que nós fazemos”, explica.

Sistema termómetro

A família usa o que Catarina chama de “sistema termómetro” para se regular: “Idealmente cada um tem o seu perfil de funcionamento e estamos num verde se tudo está bem. Se, por exemplo, hoje eu estou a fazer um esforço para olhar para si, o que não é natural para mim, estou no meu verde, mas estou a gastar muita energia. Amanhã ou mais tarde vou estar no azul. Quando começamos a ficar numa sobrecarga muito grande ficamos num amarelo, que ainda dá para recuperar, ou então num vermelho e aí é mesmo…”

Dá-nos então um exemplo do que pode acontecer quando o vermelho se impõe: “O Tomás recentemente teve um shut down de cinco dias em que não comeu. Nada. Zero. Bebeu não chegou a meio litro de água nos cinco dias. Nós começávamos a ponderar levá-lo ao hospital quando conseguimos recuperar. E tudo isto porque houve uma brincadeira de mau gosto na escola e um colega que andava a pregar-lhe partidas no recreio”.

Casos de bullying podem assumir contornos e proporções assustadoras no autismo. No ano passado, Francisca acabou nas urgências do hospital, quando decidiu que não queria voltar a respirar, comer ou dormir, depois de ser alvo de duas colegas de escola

“A Francisca ‘autistou’. A Francisca começou com medo de respirar porque podia sufocar e morrer, começou com medo de comer porque se podia engasgar e morrer e com medo de dormir porque podia não acordar”, recorda Catarina, frisando que foi “horrível”.

Para recuperar a normalidade, foi preciso “parar a vida”. Catarina esteve durante uma semana fechada num quarto escuro com Francisca. Em casa só se ouviam sussurros, os irmãos deixaram também a vida em suspenso, na tentativa de devolver a segurança a Francisca.

“Os autistas funcionam por regras e programações, portanto as crianças deixaram de ser seguras e isso nós ainda não recuperámos. Então, agora a Francisca diz que tem amigos, sim, mas os adultos. Não tem amigos crianças porque as crianças não são seguras.”

Silêncios difíceis de quebrar

Mafalda tem 11 anos e, nas palavras da mãe, veio com o pacote completo. Autista severa não verbal, sofre de epilepsia e de uma condição rara, a síndrome Von Hippel-Lindau, que faz com que tenha grandes probabilidades de desenvolver cancro nos rins, nos olhos ou no cérebro. “Desde muito cedo com a Mafalda as coisas não corriam bem. Havia uma série de coisas que ela não fazia para a idade, olhar nos olhos, andar, sentar-se sozinha, não explorar os brinquedos como deve ser, ficar muito no mundo dela…”, descreve Cláudia Carvalho.

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Uma foto de Cláudia, Mafalda e o marido | © Record TV Europa

Nuno Lobo Antunes explica que a idade de aparecimentos dos sintomas é muito variável e depende da sua intensidade, sendo que a maioria dos pais começa a desconfiar quando o bebé tem cerca de dois anos: “Tenho algumas mães que suspeitaram que algo não estava bem no próprio dia em que o bebé nasceu, pelo menor contacto visual ao dar de mamar, não haver comunicação do olhar, elas tinham outros filhos e sentiram que havia ali algo de diferente. Também pela irritabilidade do bebé, pela dificuldade em consolar junto ao peito e à pele, essa proximidade era desagradável, desconfortável para o bebé e isso foi imediatamente notado. A grande maioria começa a suspeitar entre o ano e os dois anos, sobretudo pelo atraso de linguagem, por não responderem ao nome, por não dizerem adeus ou fazerem gracinhas…”

Mafalda não fala. Os dias são pautados por longos silêncios, difíceis de quebrar. Espaços em branco preenchidos por Cláudia, que não desiste de emprestar significado à ausência de respostas da filha. “Há muitos monólogos, espaços vazios, perguntas sem resposta… Ela não responde mas, independentemente de ser não verbal, eu faço questão de as fazer, há uma comunicação, mesmo que eu saiba que não vai haver resposta. Às vezes dói um bocadinho. E dói mais quando, por exemplo, uma pessoa com filhos diz ‘já não os posso ouvir’. Começo a habituar-me aos monólogos, ela já tem 11 anos, mas é aquilo que mais me custa, passar muito tempo sem a ouvir, sem falar com ela”, lamenta Cláudia.

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Cláudia é mãe de Mafalda, uma menina autista que não fala | © Record TV Europa

Os monólogos e as crises comportamentais são apontados como o mais difícil de gerir. Mafalda perde por completo o controlo e agride-se a ela própria e a quem a rodeia. As crises são imprevisíveis e não precisam de ter um motivo concreto ou uma razão visível. “Uma vez, a Mafalda começou uma crise porque o autocarro parou de repente e ela deu um murro a um senhor a nosso lado. Numa semana conseguiu partir uma sala de aula, mandou uma auxiliar para casa de baixa… Entrou em descompensação e a escola assumiu que não tinha condições para continuar com ela.”

Uma escola de ensino especial foi a solução encontrada, mas não agradou a Cláudia que, apesar de saber que esse dia ia chegar, não estava ainda preparada: “A sociedade quer que haja uma escola onde estes miúdos especiais estejam e isso não é inclusão. Toda a minha vida enquanto mãe da Mafalda lutei para que ela seja diferente, mas na sociedade que conhecemos”.

Para Lobo Antunes, a maioria das crianças autistas deverá beneficiar de uma integração mista, mas no caso de autismos mais severos, o ensino especial será o mais adequado. “Acho que os autismos severos, altamente perturbadores, com uma agitação tremenda e sem linguagem, tem de haver espaço de convívio também com crianças sem disfunção, mas ficariam melhor, grande parte do tempo, numa unidade especializada. A larga maioria deve estar numa escola normal, haverá uma fração em que a integração deverá ser mista”, defende.

“Só quero ser mãe”

A sociedade tende a ser por vezes alheia ao desconhecido e transforma a diferença numa barreira difícil de ultrapassar. Cláudia já perdeu a conta ao número de episódios de discriminação que a filha já sofreu.

“Oiço muitas vezes que a Mafalda é preguiçosa por não falar, quando ninguém tem noção que a minha filha não fala porque não pode, não por ser preguiçosa. Já ouvi coisas como ‘também tenho de ser louco, também devia ser deficiente’…”, conta.

“As pessoas não tem noção do que dizem. Ou estarmos no parque e ter mães a dizer aos filhos ‘não brinques com aquela menina que ela é deficiente”, desabafa Cláudia

O primeiro confinamento imposto pela pandemia de covid-19 foi prova de fogo para a família. Mafalda descompensava semana após semana, sem conseguir perceber o porquê da nova realidade que viviam. “Ver a minha filha a atirar a cabeça contra as paredes, tenho paredes com a marca da cabeça dela, a atirar-se para o chão totalmente descompensada, pedir ajuda aos médicos e não a ter… Imaginem uma criança que não fala, que não percebe as coisas como nós percebemos, de repente vê-se fechada entre quatro paredes. Sem perceber porque é que não pode sair, tiraram-lhe a escola, as terapias, a piscina, tudo aquilo que ela tem por certo”, recorda.

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Mafalda tem 11 anos e já foi várias vezes vítima de discriminação por ser autista | © Record TV Europa

Não tolera frases feitas, como a ideia de que as grandes batalhas só são entregues a grandes guerreiros. Cláudia é uma mãe que não quer ser guerreira, mas apenas mãe: “Eu não queria ser mãe guerreira, só queria ser mãe da Mafalda. Não queria ser mãe de uma criança especial, ter de lidar com novo abalo, ter de lidar com uma sociedade que não é inclusiva, que não aceita a diferença, que olha de cima a baixo. Não queria ter de passar semanas em hospitais, porque a minha filha tem uma panóplia de consultas, não queria nada disto… Eu só queria ser mãe da Mafalda, uma miúda que falasse e fosse como todas as outras”.

O desconhecimento aliado à desconfiança faz com que exista ainda um longo caminho a percorrer para se compreender o mundo de um autista. Catarina revela que ainda hoje ouve que os filhos, ou ela própria, não são autistas. “Se não bate com a cabeça nas paredes não é autista… As pessoas esquecem-se que quem bate com a cabeça nas paredes não é porque é autista, é porque não está regulado”, defende.

“O mundo do autista é sempre diferente numa sociedade onde eles são muito pouco compreendidos. Cabe-nos a nós pais, fazer com que sejam”, afirma Cláudia

E quando falamos de medos, o grande receio destas mães é apenas um. “Quando eu falecer. Como é que vai ser. Enquanto eu cá estiver de uma forma ou de outra há-de dar certo. Quando eu fechar os olhos e já cá não estiver… Essa é a minha maior preocupação”, confessa a mãe de Mafalda. Medo partilhado por Catarina: “Morrer antes de acabar de os capacitar. É esse o medo. É esse. Morrer antes de o trabalho estar feito”.

 

FONTE© Envato